Beira Meu Amor

A Beira foi o grande amor da minha vida. Recebeu-me com seis anos, em Novembro de 1950 e deixei-a, com a alma em desespero e o coração a sangrar, em 5 de Agosto de 1974. Pelo meio ficaram 24 anos de felicidade. Tive a sorte de estar no lugar certo, na época certa. Fui muito feliz em Moçambique e não me lembro de um dia menos bom. Aos meus pais, irmão, outros familiares, amigos e, principalmente, ao Povo moçambicano, aqui deixo o meu muito obrigado. Manuel Palhares

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Localização: Odivelas, Lisboa, Portugal

terça-feira, janeiro 31, 2006

Os meus filhos, eu e a Internet



Faz hoje um ano que aderi à internet. Cá em casa já havia beepers, telemóveis e computadores para os meus filhos. Mas internet não. Eu opunha-me obstinadamente porque se com o que já havia, eles perdiam muito tempo, estão a imaginar o que seria com essa tal de net. E eu resistia e lutava contra a mulher e os filhos: net nem pensar! Pois! Por que razão os pais fazem estas afirmações extremistas, radicais e depois... Pronto, está dito, faz hoje um ano que vieram ligar a net cá em casa.
Ao princípio fiz a vida negra ao “inimigo que me tinha vencido”. Então nos dois primeiros meses, nem queiram saber. Quando chegaram as primeiras facturas com o dobro do débito contratado, isso é que foi o bom e o feio. Coitados dos meus filhos e da minha mulher também, por ter apoiado a iniciativa. Mas... quem pouco sabe “fala muito e pouco acerta”.
Publicitando eu a tudo o que é família e amigos, que afinal eu tinha razão, que estava à vista o resultado, blá, blá, blá... o meu irmão, que é um “calmo controlado”, cheio de pena dos sobrinhos e da cunhada, apareceu-me cá em casa com um genro que é programador. O programador, genro do meu irmão, como é óbvio, é o marido da sua filha, a minha sobrinha. Ele, o programador, é um rapaz calmo, bem disposto e brincalhão. Com uma paciência de santo ouviu-me contar as minhas queixas. Senta-se ao computador, limpa aqui, limpa ali, elimina aqui, elimina ali, instala isto e mais aquilo, e descobre que para além dos “carregamentos para baixo” – downloads – que realmente tínhamos feito, sempre que ligávamos a net, mesmo que não visitássemos nenhum outro sítio, havia sempre um “sítio residente” – home page – que aparecia sempre que lá íamos e que estava o dia todo a alimentar-se de kilobytes, megabytes, gigabytes. Estava descoberto o porquê do excesso de consumo, que ele prontamente eliminou.
Coitados dos meus filhos que juravam a pés juntos que não tinham feito muitos downloads. E a figura que eu fiz com os telefonemas que os obriguei a fazer para o servidor e os e-mails que os obriguei a enviar?! Até uma grelha lhes disse para fazerem para anotarem e controlarem os consumos diários. Para, por fim, o servidor nos vir dizer que efectivamente tínhamos gasto o que tinha sido facturado!
Estão a ver a triste figura que eu fiz, não estão? Depois, como já não podia alegar excesso de consumo, refilava com as horas que perdiam na net a cansarem os olhos, com as horas a que se deitavam, mandava-os desinstalar o modem a partir das onze da noite e por aí fora. Nesta altura sei que já despertei em vós instintos assassinos e muitos já desejaram que a minha cabeça fosse degolada, que alguém me envenenasse a comida, enfim, que eu morresse de várias maneiras e com o máximo de sofrimento possível. É natural! É natural! Mas tenho que contar toda a verdade.
Ao princípio, quando comecei a consultar a net, olhava para “aquilo” desconfiado, com a arrogância e altivez do ignorante. Dizia mal. Afinal não era bem o que propagandeavam. Está bem, concedia eu, tínhamos acesso a bastante informação, mas só isso. As enciclopédias que cá por casa havia, antes da net, também tinham essa informação. E depois?! E depois?!
A minha filha, que já é uma mulher, perante esta atitude, recusou-se determinantemente a dialogar comigo sobre este assunto. A grande vítima foi e ainda hoje é o meu filho. Com o seu metro e oitenta de altura, os seus dezanove anos e uma inteligência analítica fulminante – pai é suspeito, atenção! – todos os dias lá me foi ensinando um bocadinho do muito que sabe. Chamei-o e chamo-o vezes sem fim, interrompo-lhe leituras, filmes e jogos de futebol e quando ele está a tentar resolver os problemas que às vezes eu crio e me pergunta – “Pai, o que fizeste? O que andaste para aqui a fazer?” – eu, arrogante, prepotente e cobarde, respondo-lhe: “Eu nada, tu é que não percebes nada disto!”. Agora os que já me tinham desejado morto, triturado e entregue às feras, fazem várias rezas, daquelas de magia negra, para encomendarem a minha alma ao diabo.
Burro velho não aprende línguas, mas grão a grão lá fui aprendendo onde é que estava o quê, porque ainda por cima o teclado do computador que está ligado à net é inglês e os caracteres que desejamos nem sempre são aqueles que estão representados nas teclas. Aprendi a seleccionar, copiar, colar, transportar, guardar, adicionar fotografias e outros anexos, em suma, essas coisas elementares. Aos poucos, nos sítios das várias comunidades de ex-residentes moçambicanos, fui colocando, a medo, uma ou outra opinião, emitindo juízos de valor que não interessavam a ninguém, copiando e “pastando” poesias de autores portugueses, anedotas, e-cards, gifs, dando os parabéns e os pêsames a quem não conhecia, em conclusão, imitava o que via a maioria fazer. Aprendi também a mandar e-mails e a corresponder-me com outros internautas. Até que, acerca de dois meses, resolvi começar a contar umas histórias como esta, que concerteza poucos lerão e a quase ninguém interessará. Mas vou-me divertindo imenso e passando o tempo. Pelo Messenger e pelo Skype falo com amigos que estão na China, na Índia, no Brasil, nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa e farto-me de matar saudades e passar com eles bons momentos. Nos chats, principalmente num que visito mais, rio tanto, tanto, que tenho que interromper a minha participação por já não aguentar tanto riso, devido aos trocadilhos (nonsense) que lá se escrevem e que continuam depois nas discussões que abrimos ao longo do dia seguinte, para comentarmos o que se disse na noite anterior. Reencontrei pessoas de quem não tinha notícias há mais de trinta anos e com as quais já me juntei fisicamente em alegres encontros de celebração, por vezes também muito comoventes.
Aqui em casa passei a ser o maior utilizador da net, o seu maior consumidor. Agora é o meu filho quem me alerta para os consumos e sou eu que por vezes ultrapasso as cotas mensais contratadas. De certo que o que aqui conto não é novidade para a maioria de vós, por já terem passado por situações semelhantes. Mas eu é que não ficava bem com a minha consciência se não viesse aqui pedir desculpa aos meus queridos filhos. Agradecer-lhes a paciência, agradecer-lhes o que me ensinaram, agradecer-lhes o mundo novo e global que me mostraram. E que tantas horas de prazer me têm proporcionado. Ao meu filho em particular, o meu revisor de texto, o meu primeiro crítico e o meu editor, deixo aqui um beijo.


Manuel Palhares

Odivelas, 27 de Setembro de 2005.

* Imagem retirada de: http://exclamacao.weblogger.terra.com.br/200507_exclamacao_arquivo.htm .

O Primo Armando - II


Conclusão


Nós estávamos lá longe, na costa oriental de África, para onde só se podia ir com “ Carta de Chamada ” : um contracto de trabalho para o trabalhador, com viagens de ida e volta para ele e para a sua família e que garantisse, de cinco em cinco anos, seis meses de férias remuneradas em Portugal. Não era fácil ir para Moçambique!
Mas, como dizia, começava-se a criar uma consciência nova entre as camadas mais jovens, que questionavam prepotências e injustiças. Entretanto jovens advogados notabilizaram-se pela oposição que fizeram ao regime, nas acções de campanha eleitoral para as eleições para a Presidência da República a que concorreu o General Humberto Delgado em 1958. Na Beira, no Diário de Moçambique, propriedade da Diocese da Beira, na altura presidida por esse grande humanista, homem único e portanto singular, o Bispo D. Sebastião Soares de Resende, o jornalista Rui Cartaxana, denunciava o escândalo daquilo que ficou conhecido pelo caso dos “Terrenos da Munhava”. Centenas de hectares de terreno insalubre às portas da Beira, eram aproveitados pelos negros que serviam de estacaria ao colonialismo, para ali construirem os seus bairros de palhotas e latas. Ora acontece que estes terrenos eram propriedade de três grandes latifundiários de Moçambique que os tinham desaproveitados e ali logo viram uma oportunidade de os fazer render dinheiro – começaram a cobrar aos negros uma determinada importância mensal pela ocupação desses terrenos. Quem não pagasse a renda via a palhota e os haveres confiscados, com uma arrogância e prepotência imunes a qualquer autoridade que, aliás, nem se atrevia a interferir, tal era o poder que esses três colonialistas representavam em Moçambique. A única voz que se fez ouvir foi a do jornalista Rui Cartaxana. Fizeram-lhe de tal modo a vida negra, levantaram-lhe tantas acções por difamação – eu tenho esses livros todos – que o jornalista, com a esposa e os dois filhos, teve que ir viver para Lourenço Marques, onde criou a célebre revista “Tempo” e se defendeu como pôde. Na Beira nem o beneplácito do Bispo lhe valeu! Curioso de se ver, nessa altura, foram os advogados que anos antes gritavam pela democracia, liberdade, igualdade e fraternidade, nas suas acções como oposição ao regime, serem agora os advogados dos prepotentes e desumanos latifundiários beirenses. Estava-se em 1966.
Zeca Afonso, já homem, aparece por lá como professor do liceu. E é nessa altura que se criam em Lourenço Marques as tertúlias do Cine-Clube e do Café Continental. E que é que isto tudo tem a ver com o primo Armando? O primo Armando era um dos animadores culturais de toda aquela gente! Tertúlias no Cine-Clube que invariavelmente continuavam no Café Continental. Trocavam-se opiniões sobre os filmes e dali partia-se para opiniões sobre tudo: novos filmes, novos livros, novos discos, novas ideologias. Lá se juntavam no Café Continental, às sextas e principalmente aos sábados à noite, jornalistas, advogados, médicos, escritores e autodidactas, que à volta de uma chávena de café, procuravam soluções para os males do mundo. E, como moderador, o primo Armando. Todos pareciam ter por ele uma consideração enorme e ouviam-no na sua voz pausada, quente e envolvente. Nos seus olhos grandes que se arregalavam, como os de um menino, o espanto por tantas desigualdades e injustiças. Cúmplice de todos os injustiçados do mundo, irmão de todos os seus semelhantes.
Sempre no seu fato, gravata, meias e sapatos pretos. Só a camisa era branca. O seu carro, um caixote pequeno, velho, preto e ridículo que por uma razão ou por outra estava sempre a avariar, estava preso por arames e tinha que trazer como passageiro um garrafão de cinco litros de água, ou porque o radiador estava furado ou porque a água se evaporava, tal era o aquecimento. Mas recusava-se a mudar de carro. Toda a gente, principalmente a da baixa laurentina, conhecia aquele carro. Era o último da sua geração que ainda estava no activo!
Eu tive a sorte de conviver com o primo Armando, com a sua querida Aninhas e com a sua filha, durante os quatro anos que vivi em Lourenço Marques, quando para lá fui para a universidade. A ele lhe devo o gosto pela literatura, pela música de intervenção, pela poesia, pela pintura, enfim, por todas as formas de arte, pela cultura em geral. Com ele ouvi Luís Cília, Adriano Correia de Oliveira e Zeca Afonso. Apreciei Picasso e Guernica, Van Gogh e Gauguin. Com ele joguei xadrez ao som de sonatas para piano de Chopin. Ajudei-o, juntamente com a filha, a colar as legendas nos filmes do Cine-Clube aos sábados à tarde. Em filmes já muito velhos que se estavam sempre a partir e que ele com uma paciência de deus colava e recolava. Agradeço-lhe sobretudo aquelas tertúlias do Café Continental, onde eu só ouvia, encantado, todos aqueles expoentes do pensamento livre laurentino e aprendia, aprendia. De vez em quando olhavam para mim interrogadores a verem se eu os seguia ou se me aborrecia, e eu bebia aquelas palavras todas fascinado. Foi lá que fiz a minha iniciação a todas as formas em que o pensamento humano se expressa, foi lá que bebi a liberdade pela primeira vez. Fiz mais que um bacharelato, fiz uma licenciatura de quatro anos!
O primo Armando dizia-se comunista e ateu e foi o cristão mais puro e genuíno que conheci. O seus olhos ficavam marejados quando lia ou ouvia sobre o sofrimento dos outros. Queria sempre passar aos outros num altruismo sem igual, tudo o que sabia, sem protagonismo nem egoísmo. Só hoje compreendo porque quando nos dava conselhos tinha a angústia no olhar, porque sabia que não conseguia passar a mensagem que ele acreditava ser a chave para a felicidade entre os homens. No fundo o que ele nos queria dizer, ele que era ateu, foi o que o Outro, antes dele, nos tentou também ensinar e foi cruxificado por isso: “- Amai-vos uns aos outros!”. E era esta certeza de que a mensagem não passava que o agoniava. Urgia não perder tempo porque a cada segundo que passa há sempre crianças, mulheres e homens a morrer da pior das doenças: a fome!
Estávamos no dia da sua saída de Moçambique. Dali a uma hora iam para o aeroporto. Regressavam a Portugal e iam viver perto de mim, ali no Jardim da Parada em Campo de Ourique, o “Quartier Latin” lisboeta. Eu antecipava tertúlias várias e longos jogos de xadrez ao som das músicas que me ensinou a gostar. Ele apareceu à mulher, à prima Aninhas, já todo pronto. Perguntou-lhe se ela precisava de alguma ajuda e ela pediu-lhe que a ajudasse a deslizar o fecho de correr de um saco. Ele assim fez. Foi a última vez que ela o viu vivo. Faltava meia hora para irem para o aeroporto. Ele disse-lhe que ia descendo para fumar um cigarro. Daí a pouco um grito. A dona da casa onde estavam hospedados encontrou-o na garagem, enforcado, com uma corda de roupa que por ali estava. Foi assim de repente, num instante. Lá no fundo, o que o estava a matar, era ter que largar aquela terra onde só deu e nunca recebeu nada em troca. Deste modo já não saia de lá. E lá ficou! Na terra em que tinha escolhido viver vinte e oito anos antes.


Manuel Palhares

Odivelas, 25 de Setembro de 2005.

O Primo Armando - I


Primeira parte


Hoje vou falar-vos de um ser humano singular – o primo Armando.
Começo por vos contar como é que o primo Armando era o primo Armando. É um pouco sinuoso e complicado explicar como é que o primo Armando era o primo Armando. O primo Armando era filho de um director bancário da sede do Banco Borges e Irmãos no Porto – o primo Mário Morais, sobrinho do grande médico, cientista e investigador português, o psiquiatra Júlio de Matos. Após o seu divórcio, o pai do primo Armando que tinha ficado com a custódia dos filhos, matriculou-os num colégio do Porto, cuja directora era uma prima direita da minha avó materna – a prima Irene. Acontece que o pai do primo Armando e a directora do colégio, engraçaram um com o outro e resolveram casar. Assim a prima Irene, a directora do colégio, passou também a ser a madrasta de cinco dos seus alunos: o primo Armando e as suas quatro irmãs. O primo Armando era o mais velho. Dito tudo isto de outro modo, uma prima da minha avó materna, a prima Irene de Almeida Lucas, casou-se com um homem divorciado que tinha cinco filhos e que era director da sede do Banco Borges e Irmão na cidade do Porto. Assim ficou mais fácil, não ficou?
Do casamento da prima Irene com o primo Mário, nasceu uma menina, a prima Roxinha, que era prima da minha mãe e irmã, por parte do pai, do primo Armando e suas irmãs. Eu avisei que ia ser sinuoso e complicado explicar tudo isto, mas acho que está razoavelmente explicado. Consanguineamente, o primo Armando não era nada à minha mãe, mas ele, o pai e as irmãs passaram a ser primos sem o serem.
Quando o pai se casou de novo, o primo Armando teria os seus catorze anos. Foi crescendo, foi à inspecção militar e aos vinte e um anos estava a cumprir o serviço militar em Vila Real. Aí conheceu uma transmontana loura, de olhos esverdeados, linda de morrer – a prima Aninhas. Apaixonaram-se, casaram e tiveram um filho. Entretanto, o primo Armando, que tinha a carreira profissional assegurada no Porto, dado o estatudo profissional e social do pai, resolve oferecer-se para um comissão militar em Timor. Parte em 1943 em plena 2ª Guerra Mundial. Já nessa altura tinha as suas convicções políticas. Ia lutar pela liberdade dos povos oprimidos, pela injustiça social.
Regressa doente ao Porto, depois da guerra acabar, em 1945, e depois de uns meses de convalescência de doenças tropicais, sendo a pior delas a Malária, começa a trabalhar. Mas, uma vez pelo oriente longínquo em que esteve, como foi a sua estada em Timor, o Porto já não lhe dizia muito, prendia-o, sufocava-o. Assim sendo, sabe de uma vaga em Lourenço Marques, para os Caminhos de Ferro de Moçambique, concorre e em 1948 lá vai ele, com a mulher e o filho, para Moçambique. Sempre trabalhou no edifício da praça Mac Mahom até 1975, quando se reformou como Inspector Superior dos Caminhos de Ferro de Moçambique, já próximo da independência da colónia portuguesa. Preparava-se para regressar a Portugal, para viver, desafogadamente, da sua reforma. Mas voltemos atrás, aos tempos em que jovem, com espírito inquieto, sedento de tudo o que era cultura, lia loucamente e consolidava ideais políticos, primeiramente já absorvidos num Porto que sempre foi liberal. Então, depois de já ter estado em Timor, em Moçambique sempre o chocou a desumanidade e injustiça social que o colonialismo “cantando espalhava por toda a parte”. Não se podendo conter, emitia opinião, intervinha onde não se devia meter e tinha problemas profissionais e com as autoridades policiais e políticas da colónia. Cá em Portugal, as influências do pai e do tio-avô, o psiquiatra Júlio de Matos, iam-no aguentando no emprego, fora da prisão e de um provável degredo para a Índia ou Timor, neste caso obrigado, por castigo, e não por sua livre iniciativa.
Em 1953, a família vem de licença graciosa a Portugal. O pai, ainda no activo, tenta de novo convencê-lo a ficar e ir trabalhar para o banco. Mas ele, que entretanto também já era pai de uma linda menina, regressa a Moçambique acabadas as férias, em 1954. As suas ideias anarco-sindicalistas estão mais aguçadas que nunca. No Porto saciou a sede de cultura que trazia após aqueles cinco anos em Moçambique e abasteceu-se de toda a espécie de livros para levar para aquela colónia.
Lourenço Marques, como capital, tinha já a sua elite social e intelectual. Por lá andavam Reinaldo Ferreira, Rui Knopfli, Dr. Barradas, José Craveirinha, Gilherme de Melo, Malangatana e outros de menor relevo, mas que formavam um núcleo intelectual ainda em incipiente formação, mas já com consciencialização cultural, social e política. Depois, havia ainda o núcleo do Cine-Clube também em formação. Enfim, formava-se em Lourenço Marques um grupo de homens novos que se interessava por política, por literatura, por arte, por cinema e que começava a tomar consciência própria e a fazer a ruptura com o passado.


Manuel Palhares

Odivelas, 24 de Setembro de 2005.

As minhas aventuras em Pebane - VI


Episódio Nº 6 – O Lanche


A minha mãe tinha saido de manhã e eu sabia que tinha ido às lojas e cantinas da vila, às compras, e quando chegou a casa vinha com um certo ar misterioso – os filhos também se apercebem destas coisas. E só pouco antes do almoço é que me lembrei. O meu irmão fazia naquele dia cinco anos! E a minha mãe ia fazer-lhe uma pequena festa de anos.
Depois do almoço deu instruções ao criado de dentro, ao moleque, para fazer um lanche melhorado. Ela própria fez questão de ir verificar se tudo estava bem. Era um lanche de anos: jarros com água, sumo de laranja e leite com Ovomaltine. Sandes de fiambre e queijo, aos triângulos, em pão de forma sem côdea. Salgados e um bolo de chocolate com cinco velas. Espalhados pela toalha da mesa, rebuçados de várias cores. Os copos, brancos, lisos e cilíndricos, estavam enfeitados com guardanapos coloridos. Eu, ansioso, não parava de um lado para o outro da sala. De vez em quando ia espreitar à varanda. O Zambézia não havia meio de chegar. A minha mãe tinha-lhe mandado recado para aparecer por volta das quatro horas. Que mania têm os grandes de dizerem “por volta de”! Por que não dizem logo a hora certa?
Às quatro horas e dez minutos eu ouço bater à porta da frente. Corri, fui ver. Era o Zambézia! Quem desta vez olhava e mirava admirado era eu. O Zambézia tinha cortado o cabelo muito rentinho, vestia calções e camisa de caqui impecavelmente passados a ferro e calçava umas sapatilhas – agora chamam-se ténis – de cor castanha clara. Numa mão trazia um ramo de flores silvestres, muito bem arranjado, que por momentos receei que fossem para mim. Na outra, um embrulho em papel de caqui.
- Olá, boa tarde! Entra Zambézia, entra. Estava a ver que não vinhas, nunca mais chegavas.
- Eu vinha, vinha! O meu pai é que me disse que nosso não podia vir muito cedo.
- Boa tarde Zambézia, como estás? – cumprimentou a minha mãe que entretanto aparecera com o meu irmão.
- Nosso estar muito bem sinhora, muito obrigado.
- Trazes aí umas flores muito bonitas! – disse a minha mãe.
- São para a sinhora, toma! – respondeu o Zambézia, entregando o ramo de flores à minha mãe.
- Muito obrigado Zambézia. – exclamou a minha mãe. – Mas que lindas! Dá cá um beijo – e inclinou-se beijando o Zambézia. – Vou já arranjar uma jarra para as pôr ali ao pé da mesa do lanche.
- E este embrulho é para o minino Nani. Nosso saber que ele fazer hoje anos. A minha mãe, apanhada de surpresa, corou e disse ao meu irmão para aceitar e agradecer. O que ele fez.
- Mas como é que tu sabias que o Nani faz anos hoje?
- Então sinhora não sabe que nós, os preto, não precisa de correio nem telefone? Nós saber tudo muito depressa. – A minha mãe olhou-o admirada! Entretanto o meu irmão já tinha rasgado o embrulho e estava ajoelhado no chão a brincar com um lindo camião de madeira.
- Que lindo! Quem o fez Zambézia?
- Foi o meu pai! – a minha mãe, se já estava admirada, agora estava também comovida. E para disfarçar disse:
- Fica à vontade. O Manuel quer-te mostrar o quarto mas não demorem muito.
Eu lá fui com o Zambézia para o quarto e mostrei-lhe toda a tralha que tinha trazido comigo da Beira: berlindes de todas as cores, bolas, jogos da Majora, livros, “comics” – livros aos quadradinhos que agora se chamam de banda desenhada – e uns carrinhos “tipo Fórmula 1” da marca Dinky Toys. O Zambézia estava fascinado com tudo o que via. Ele vivia numa pequena vila costeira, no idos de 1955, onde pouca coisa dessa chegava e a que chegava não era para meninos como ele. O que mais o fascinou foram realmente os livros de quadradinhos do Walt Disney, pelo fascínio dos bonecos, pois ele não sabia ler e os carrinhos dinky toys que vinham nas suas caixas amarelas, com o desenho do carro na caixa.
- Anda, agora vamos e depois do lanche voltamos para aqui e podes brincar com o que quiseres. Até te dou um livro e um carrinho.
Entretanto o meu pai também chegara. Veio mais cedo. Depois de um rápido banho estava na sala a observar o meu irmão a brincar com o pequeno camião, talhado na madeira pelo canivete do pai do Zambézia. Já sabia da história do camião.
- Olha o Zambézia, o amigo do meu filho – disse o meu pai cumprimentando o Zambézia com uma festa na cabeça. – O teu pai tem muito jeito e pelo que sei tu também!
Ao lanche o Zambézia portou-se com muita cerimónia, a ponto de a minha mãe o ter que incentivar e distrair para ele beber e comer mais. Perguntou-lhe pela mãe e pelos irmãos, que viviam numa aldeia tradicional, perto de Maganja da Costa, que ainda era um pouco longe e os quais o Zambézia visitava quinzenalmente com o pai, aos fins-de-semana, apanhando boleia nos camiões que vinham abastecer as cantinas. Ele era o mais velho de quatro irmãos: dois rapazes e duas raparigas. Viera com o pai para Pebane, para estudar na missão dos padres, mas já chegara com o ano lectivo adiantado e os padres da missão acharam por bem ele recomeçar os estudos no início do próximo ano lectivo, em Setembro. Assim, ia-se ambientando à vila, aos seus usos e costumes. Deste modo distraido, o Zambézia lá foi comendo mais um pouco, sem nunca perder a sua postura de menino, a quem o pai dera instruções sobre como se comportar. A minha mãe insistiu muito com ele para que não deixasse de estudar e tirasse a 4ª classe, que era o que por ali havia e o que ele devia fazer. Depois... bem, depois, o meu irmão que apanhou todos a conversar, já tinha furado o bolo com todos os dedos e estava pintado de chocolate! Todos se riram! Acenderam-se as velas e cantámos os “Parabéns a Você!”. O meu irmão também teve uma prenda dos meus pais. Era um pequeno farol a pilhas, o qual rodando um plástico circular, dava luz branca, vermelha e verde. Pegou nele, olhou-o por todos os lados, pousou-o em cima da mesa e foi brincar para o chão com a camioneta que o Zambézia lhe oferecera, já mais ou menos limpo do chocolate. O Zambézia também teve uma prenda. A minha mãe tinha-lhe conseguido comprar um daqueles canivetes, “tipo suiço”, que o deslumbrou com aqueles anexos todos. Eu também tive uma lembrança qualquer. Mas, à noite, quando fui para a cama, era com o farol do meu irmão que brincava no quarto às escuras. Que efeitos aquilo fazia nas paredes! E os cães vendo aquilo, gemiam e rosnavam. Estava a acabar o dia 31 de Julho!
Eu tenho mais histórias com o Zambézia para contar, mas por agora, penso que devo fazer uma pausa.


Manuel Palhares

Odivelas, 21 de Setembro de 2005.

As minhas aventuras em Pebane - V


Episódio Nº 5 – A chegada do Pai


Entrei em casa e como a minha mãe me tinha dito fui direito para a casa de banho. Tinha que me despachar. O meu pai devia estar a chegar e ia precisar também de tomar banho antes do jantar. Lavei-me com um sabonete que a minha mãe disse que cheirava a desinfectante, mas que eu adorava – o Lifeboy! Eu bem vira no cartaz da cantina o reclame. Aquilo é que era sabonete para rapazes. Os outros eram para meninas, cheiravam a perfume de senhoras. Todo penteadinho, de calções, camisa e meias brancas, fui sentar-me na sala a folhear um dos livros de caça – “A Caça aos Elefantes”. Ali estavam aquelas fotografias de enormes paquidermes abatidos por famosos caçadores, fotografados junto das suas presas, de espingarda na mão, fazendo pose, rodeados pelos seus ajudantes africanos (pisteiros ou guias), que também posavam com as espingardas supelentes. Aquilo fascinava-me e eu lia, nas legendas das fotografias, o local da caçada e os nomes dos caçadores e dos seus ajudantes. Aqueles livros ainda hoje estão presentes na minha memória: era uma colecção de livros enormes, um por cada animal diferente, com a fotografia do animal a que dizia respeito a caçada na capa. Mais tarde, já homem, ainda os vi na montra da livraria Salema na cidade da Beira.
Ouvi o barulho do jeep a chegar. Era o meu pai que regressava. Corri para a varanda. Já tinha escurecido.
- Papá, papá! – corri para ele cheio de saudades e abracei-o. Não o via desde o dia anterior, porque saira de madrugada, ainda eu dormia. – Então papá, como lhe correu o dia? – eu nunca tratei o meu pai por tu, mas sempre nos amámos muito! – Muito trabalho, não foi!?
- Algum, algum! E tu? Como é que foi o teu dia? Brincaste muito, divertiste-te? Portaste-te bem? Não arreliaste a tua mãe?
- O meu dia foi muito bom, diverti-me e brinquei muito. Quanto ao portar-me bem e arreliar a mamã, é que, é que...
- É que, o quê? Estás gago? O que é que aconteceu? Fizeste alguma asneira?
- Bem papá, asneira, asneira não fiz. Mas desobedeci à mamã.
- Desobedeceste à mamã!? O que é que fizeste? Já sabes que eu não gosto que arrelies a tua mãe. O que é que fizeste?
- Fui brincar para a praia sem lhe pedir ordem e tomei banho. E também me esqueci da hora do lanche.
- Bem, bem, e já lhe pediste desculpa como deve ser?
- Eu já lhe pedi desculpa, mas a mamã estava tão séria que nem lhe dei um beijinho.
- Bem, isso arranja-se! E foi só isso o que fizeste ou houve mais alguma coisa?
- Não papá, foi só isso. E conheci um menino preto que se chama Zambézia, que hoje de manhã me ensinou a fazer cordas com uma planta que se chama sisal e que fez uma “zagaia” e setas e que subiu a um coqueiro com uma corda para ir arrancar dois cocos para nós e que hoje à tarde, na praia, me ensinou como aliviar as irritações das alforrecas e das garrafas azuis, com areia e que amanhã vem lanchar cá a casa e que...
- Pára, pára! Tem calma filho. Deixa-me ir tomar banho que depois quero ouvir tudo isso com calma. – Atrás de nós ouviu-se o alegre riso da minha mãe. Virámo-nos e lá estava ela, linda, com o meu irmão ao colo, o qual já estendia os braços para o meu pai. Os meus pais olharam-se cheios de cumplicidade e beijaram-se, com o meu irmão pelo meio, que já tinha as mãos no pescoço do nosso pai.
A minha mãe, eu e o meu irmão fomos para a sala, enquanto o meu pai foi tomar banho e arranjar-se para o jantar. Passado meia-hora já estava ao pé de nós. A minha mãe preparou-lhe um whisky como ele gostava: uma dose medida por aqueles aplicadores que se enfiavam nos gargalos das garrafas, água e muitas pedras de gelo. O meu irmão, com os cabelos de um louro muito claro, quase branco, saltou-lhe para o colo e eu sentei-me no chão a seus pés, suplicando surdamente que ele olhasse para mim e me desse uma oportunidade para eu lhe contar tudo, tudo, com todos os pormenores.
- Então esse menino já te contou o susto que me pregou hoje? – disse a minha mãe fingindo-se ainda zangada.
- Já, já! Mas parece que ele tem qualquer coisa que te quer dar.
- Dar?! A mim?! Não sei o que possa ser, depois da partida que me pregou.
- É um beijinho de desculpa mamã!
- E então do que estás à espera? – exclamou a minha mãe sorrindo e abrindo os braços, para os quais me precipitei a correr, sorrindo também, com a alma aliviada. Aqueles momentos eram mágicos. Não pareciam deste mundo. Tudo à luz do petromax ou do aladdin, com um quase imperceptível silvo e cheiro do petróleo a queimar na camisa dos candeeiros. O meu pai olhou para nós, todo satisfeito, e bateu com a mão no sofá para eu me sentar ao seu lado. Então eu contei-lhe tudo. Ao meu pai – ao meu herói!
Depois do jantar voltámos à sala onde os meus pais tomaram o café e eu me entreti novamente com os livros de caça. As minhas pálpebras estavam a começar a ficar pesadas. Dei as boas noites aos meus pais, beijando-os e fui para o meu quarto que ainda cheirava levemente a flit. Despi-me, vesti os calções do pijama, levantei a rede mosquiteira e deitei-me. Virei-me para a janela, protegida a rede mosquiteira também, olhei para os cães, que da varanda espreitavam pela janela e gemiam e disse-lhes:
- Até amanhã! – Fechei os olhos feliz. Que dia! O melhor estava para vir, agora que começava a sonhar!


Fim do 5º Episódio


Manuel Palhares

Odivelas, 19 de Setembro de 2005.

As minhas aventuras em Pebane - IV


Episódio Nº4 – A ida à Praia


- Zambézia! Zambézia! Estás aí? Onde te meteste?
- Estou aqui, Manuel! - respondeu-me o Zambézia, encavalitado num tronco de uma enorme mangueira que havia no quintal. Estava comendo uma manga, daquelas que parecem ter vindo do paraíso, pintadas em tons de verde, amarelo e vermelho! - Queres uma? – perguntou-me ele.
- Não, obrigado. Já pensate no que vamos fazer hoje à tarde? Se quiseres jogar à bola, eu tenho uma lá em casa. Posso ir buscá-la. Que dizes?
- Manuel, está muito calor para jogar à bola. Tu não queres ir tomar banho na praia? Brincar com a areia? Ficar deitado perto da água e tomar banho com o espuma? Ias ser bom! Tu que pensa? Num quer ir? Fala Manuel.
Eu estava calado porque a minha mãe tinha-me dito que não gostava que eu fosse para a praia sozinho. E por isso tardava em dar a resposta ao Zambézia. Por fim, disse-lhe o motivo da minha hesitação.
- Ó Manel, mãe é assim mesmo! Pensa que nossos, os rapazes, ser igual às mininas. Estar sempre com os medos.
- Pois, mas eu não vou agora entrar em casa para ir buscar os calções de banho.
- E tu precisas disso para quê? Tu não usas cueca?
- Uso e depois? O que é que isso tem a ver com a praia e o banho?
- Então tu tomas banho com os cueca e depois pões a secar.
Aquilo para mim entrava numa situação nebulosa entre verdade, mentira e desobediência. Mas realmente estava tanto calor! Até que me convenci a mim próprio que ia apenas dar um passeio até à praia e lá chegado, todo suado, o melhor era mesmo tomar um banhito para tirar aquele suor todo e não chegar a casa empapado no dito. Foi um pensamento tortuoso, para contornar a desobediência e ficar de boa consciência comigo, com os remorsos, com a minha mãe e com Deus. Era álibi para consciências pesadas.
- Ó Manuel, Manuel! – chamava-me o Zambézia. – Tu está a pensar no quê?
- Olha Zambézia, estou a pensar que tu aí em cima da mangueira, a convidar-me a ir à praia, sem pedir autorização à minha mãe, pareces o diabo.
- Xá! Xá! Diabo, eu? Num pode ser. Eu não ser mau! Eu ter respeito com Deus. Lá na missão que eu costumava ir, o padre ensinou para nosso essa coisa do diabo. Eu não ser essa coisa não. Eu não fazer mal nos outros, não senhores. Eu aprendeu esse coisa do respeito...
- Pronto! Pronto! Zambézia, convenceste-me. Vamos lá à praia. Ainda vou arranjar problemas, mas vamos lá.
- Problemas, nada! Vai ser bom – disse o Zambézia.
Chegados à praia, tirei a camisa e os calções e coloquei-os dentro do capacete, junto às sandálias, perto de uns arbustos. A praia de Pebane era uma praia diferente das outras, parecia uma praia de uma região vulcânica. A sua areia não era limpa como uma praia padrão. Estava impregnada de um pigmento escuro, que era um minério do qual não me lembro agora o nome. Era exactamente esse minério, que se misturava com a sua areia, um dos motivos pelos quais eu me encontrava em Pebane. O meu pai tinha-se ali deslocado profissionalmente para fazer o levantamento topográfico das praias de Pebane e de uma ilha que ficava mesmo em frente a Pebane, a Ilha do Idugo, onde esse minério abundava em grande concentração. O objectivo final, depois dos estudos preliminares, era fazer a extracção desse minério para fins industriais e ao mesmo tempo devolver à praia a areia limpa do mesmo. Era obra de gigantes! E, como muitas outras coisas em Moçambique, teve os seus “velhos do Restelo” e acabou por não ir avante e ficar pelos estudos de viabilidade técnica e económica. O outro motivo que fez com que o meu pai se deslocasse à Zambézia, tinha também a ver com um levantamento topográfico numas minas que ficavam a uns quilómetros de Pebane e das quais falarei noutra ocasião. Porque também essas minas, as entranhas da terra virgem da Zambézia, fazem parte do meu imaginário africano. Mas, terminada esta pequena explicação sobre a razão pela qual estávamos em Pebane, voltemos aos dois miúdos que abandonámos na praia. Esqueceram-se deles? Vamos ver o que estão a fazer?
Pois que podem estar a fazer dois miúdos de dez anos, numa praia deserta e só deles, com uma areia diferente? Exactamente o que fariam em qualquer outra praia. Corriam, saltavam, tomavam banho de mar e espuma, faziam construções na areia e deitavam-se a apanhar sol. Os quatro cães, que sempre nos acompanhavam, faziam o mesmo que nós. Não havia diferença nenhuma, éramos seis crianças que se divertiam imenso, num canto do paraíso. O Zambézia ensinou-me como aliviar as irritações cutâneas provocadas pelas alforrecas e pelas garrafas do azuis: esfregar areia na zona afectada.
De repente olhei para o sol e reparei que já vinha baixo. E veio-me à memória uma coisa: o lanche! Tinha-me esquecido e já era tarde. Não faltava muito para anoitecer. Talvez menos de uma hora. Tirei as cuecas, vesti os calções, calcei as sandálias e corremos para casa a bom correr que a praia não era assim tão perto. A meio da vila encontrei um empregado que a minha mãe, já preocupada, mandara procurar-me. Avistei logo a minha mãe, que dava a mão ao meu irmão, na varanda exterior que circunscrevia a casa. Estava com cara de poucos amigos e tinha razão. Eu vinha de cabelos desalinhados, camisa de fora, cheio de areia e de cuecas na mão.
- Foste à praia, Manuel Alberto? – quando a minha mãe me chamava Manuel Alberto, as coisas não estavam nada boas para o meu lado.
- Fui mamã, desculpa! – disse eu.
- Desobedeceste-me! Não esperava isso de ti. Estás num lindo estado, não haja dúvidas. Entra e vai imediatamente para a casa de banho e prepara-te para o jantar. Hoje não lanchas!
- Sinhora! Dá licensa, sinhora?
- E tu é que és o Zambézia, não é verdade? Esperava conhecer-te noutras circunstâncias. Sem ser a fazeres asneiras com o meu filho.
- Mas sinhora, os minino não teve culpa. Foi eu, o Zambézia, que desafiou a ele para ir no praia com nosso. Num zanga sinhora. Disculpa o minino. Culpa é do Zambézia.
A minha mãe olhou para ele com uma ternura que só uma mãe sabe pôr no olhar e disse-lhe numa voz doce:
- Já falei com o teu pai e pedi-lhe para te deixar cá vir amanhã lanchar com o meu filho. Quero conhecer-te melhor Zambézia!
- Está muito bem sinhora, obrigado. Nosso amanhã vem lanchar aqui neste casa.
- Então fica combinado. Até amanhã, Zambézia.
- Até amanhã, sinhora!


Fim do 4º Episódio


Manuel Palhares

Odivelas, 17 de Setembro de 2005.

As minhas aventuras em Pebane - III


Episódio Nº 3


A minha mãe e eu acabámos de almoçar e ela nem me deixou respirar:
- Vai lavar as mãos e os dentes! – disse-me ela.
- Tá bem mamã. Depois posso-te contar com o que sonhei hoje e o que aprendi hoje de manhã?
- Claro que podes. Vai, despacha-te. Eu vou ali sentar-me na sala e fico à tua espera.
Eu fui e vim num relâmpago.
- Já!? Deixa-me ver essas mãos e esses dentes! Uhm! Então conta-me lá esse sonho que tanta pressa tens em fazê-lo.
- Ó mamã, estás a ver estes livros enormes que estão aqui nesta mesa?! Eu à tarde, depois do almoço, e à noite, depois do jantar, venho sempre para aqui lê-los e ver as fotografias! E como cada um tem na capa a fotografia de um animal diferente, assim eu posso escolher se quero ler sobre caçadas de elefantes, de leões, de búfalos, de leopardos, de antílopes e assim. Estás a compreender, mamã?
- Estou, estou! E depois vais para a cama sonhar com essas coisas e até falas a dormir! Não devias ler essas coisas à noite, porque depois vais agitado para a cama.
- Oh! Mamã! Não te preocupes. Eu durmo bem e adoro os meus sonhos.
Acordo sempre bem disposto e feliz!
- Então conta-me cá com o que é que sonhaste esta noite. Com alguma caçada que lês nesses livros, não!?
- Não, mamã! Esta noite sonhei com o Rei Salomão!
- Com o Rei Salomão! Andaste a ler a Bíblia também?
Ó mamã, não foi com esse! Fui com o outro, o que tinha as minas de diamantes e outras pedras preciosas aqui em África!
- Ah! Com esse! E então, que aconteceu nesse teu sonho, assim de tão importante?
- Aconteceu que eu era um guerreiro zulu mamã! E pertencia aos guardas especiais do Rei, àqueles que só o podiam ser depois de terem dado provas de grande valentia, de grande coragem. Tinham que ir para o mato sozinhos, só com uma lança e matar um leão. E eu consegui isso! Bem, pelo menos no meu sonho...
- E também me querias contar qualquer coisa que aprendeste com esse menino, filho do empregado da casa aqui ao lado, não era?
- Era, era, mamã! Ele ensinou-me a fazer cordas com uma planta que se chama sisal. Tu sabias isso?
- Bem. Para ser franca contigo só sei que as cordas são de sisal e não sei mais nada.
Então eu contei, demorada e detalhadamente, à minha mãe, tudo o que tinha aprendido com o Zambézia nessa manhã. A minha mãe olhava-me admirada e quando eu acabei de contar a história, afirmou:
- Num destes dias, hás-de trazer esse menino cá a casa, para eu o conhecer. Convida-o para cá vir lanchar contigo.
- Posso mamã, posso?
- Claro que podes! É isso precisamente que te estou a dizer.
- Ó mamã, obrigado! Tu és muito boa e eu gosto muito de ti.
- Também eu gosto muito de ti, do teu irmão e do papá. Nunca te esqueças disso. Olha, parece-me que o teu irmão acordou. Vou ver como é que ele está. Podes ir brincar com esse teu amigo, mas não te esqueças do capacete. Ao sol ainda está muito quente. Tem cuidado por onde andas. Não te esqueças da hora do lanche.
- Pronto, agora vai! Que vou ver o teu irmão que já chama por mim, não o ouves?
- Ouço sim, mamã. Parece-me que acordou bem disposto. Até logo mamã!
Eu já ia disparado, sala fora, quando a minha mãe me perguntou:
- Ouve lá, filho. Tu ainda não me disseste o nome desse menino teu amigo. Como é que ele se chama?
- Chama-se Zambézia, mamã!
- Zambézia! – exclamou a minha mãe admirada. – Tem piada! Tem piada!


Fim do 3º Episódio


Manuel Palhares

Odivelas, 16 de Setembro de 2005.

As minhas aventuras em Pebane - II


Episódio Nº 2 – O Zambézia


- Qual é o teu nome?
- Eu chamo-me Manuel. E tu?
- O meu nome é Zambézia.
- Zambézia!? Mas isso é o nome deste distrito!
- Eu isso de distrito não sei. Eu não foi na escola. Mas o meu nome é Zambézia, sim senhor!
- Está bem, está bem! Não fiques zangado. Olha, o que queres fazer? Queres brincar a quê?
- Nós podia fazer cordas para depois fazer zagaias!
- Fazer cordas para fazer zagaias?! Mas as cordas não se fazem. Já estão feitas! Eu posso pedir à minha mãe umas quinhentas e vamos comprar a corda ali à cantina.
- Vocês branco, gosta mesmo de gastar dinheiro. Não precisa nada de ir no cantina. Aqui tem cordas por todo o lado!
- Olha lá, tu estás a fazer pouco de mim ou quê? Onde é que estão as cordas?
- Estão mesmo encostadas às tuas pernas! Tu é que não sabes ver.
- Ouve lá, Zambézia! Nós combinámos ontem que hoje íamos brincar. Mas tu estás para aí com essa conversa maluca e eu assim vou brincar sozinho. Se queres fazer zagaias para brincarmos eu peço à minha mãe dinheiro, vamos à cantina comprar corda, arranjamos os paus para as zagaias e depois fazemos as setas. Ou queres ou não queres. Mas não te ponhas para aí com essas maluqueiras, a dizer que não é preciso ir comprar a corda à cantina, porque aqui não há corda nenhuma!
- Não zanga comigo Manuel! Não precisa ficar zangado comigo. Eu vai mostrar para tu que aqui há corda e por que é que tu não consegue ver. Anda cá. Estás a ver esta planta que aqui tem muito?
- Estou, e depois? O que é que isso tem a ver com as cordas?
- Tem Manuel. Esta plantas verdes tem as cordas escondidas lá dentro.
- Pronto, agora é que estás maluco mesmo – disse-lhe eu. - Olha, vou-me embora e vou brincar sozinho. Tu não estás bom da cabeça.
- Espera Manel, espera! Eu vou mostrar para tu que é mesmo verdade o que eu digo. Olha, esta planta verde chama sisal! E eu vou mostrar para tu que ela tem escondida corda dentro dela. Vê! Eu arranco duas folhas ou três da planta, assim. Agora pego nesta pedra e raspo com ela o verde. Vês, o verde está a sair e estão a ficar estes fios. Pronto! Agora o verde já saiu. Tu estás a ver estes fios que estava escondido com o verde? Agora só tem que enrolar os fios, como faz com as tranças de mininas. Assim, assim, assim, ... Estás a ver? Está a ficar corda, não está?
Eu estava espantado! Não é que o Zambézia tinha uma corda na mão! Que estava escondida em três folhas lanceoladas de sisal, como ele dizia!! Fizemos mais cordas que com mestria o Zambézia me ensinava a unir umas às outras, para lhes aumentar o comprimento. Depois ele, o Zambézia, subiu a uma árvore com a agilidade de um felino e, com um pequeno canivete que tinha no bolso dos calções, cortou dois ramos compridos para fazermos as zagaias. Ainda com o canivete, fez uma fenda em cada uma das extremidades dos paus, por onde fez passar cada uma das pontas das cordas. Em seguida deu um nó em cada ponta, para estas não sairem. Isto depois de arquear o pau e verificar a tensão das cordas. Finalmente, com fios de sisal, cobriu os nós de cada extremo, evitando assim que estes saltassem para fora da fenda. Eu estava estupefacto com a magia que tinha acabado de ver sair das mãos do Zambézia! Olhei-o com admiração e consideração. Ele fez-me lembrar um artista que eu tinha visto no circo e que também fazia aparecer coisas. O meu pai ensinou-me como é que se chamavam esses artistas, mas é um nome muito complicado. O Zambézia era isso mesmo: um “prestagitas”, ou um nome assim difícil.
Bem, feitas as zagaias, o Zambézia, também habilmente cortou com o seu canivete uns paus finos e direitos, aguçou-lhes uma extremidade e estavam feitas as setas. Brincámos toda a manhã. Num pequeno palmar próximo das duas casas onde vivíamos, num extremo da vila. Na nossa imaginação fartámo-nos de caçar. Graças à magia do Zambézia, que conseguiu provar-me que há coisas que a natureza nos oferece, que estão mesmo ao pé de nós e não as vemos.
Suados, mais eu que o Zambézia, sentámo-nos para descansar. O Zambézia vira-se para mim e diz:
- Ó Manel, tu não ter sede? Eu ter muito sede.
- Eu sede tenho, mas esqueci-me de trazer água.
- Não precisa. Tu gostas dos leites do coco?
- Eu gostar, gosto. Mas onde é que tu vais arranjar um coco agora?
- Ó Manel, tu fostes na escola fazer o quê? Então tu não sabes que aqui é a terra dos coqueiros?
- Isso eu sei. Mas o que é que isso tem a ver com os cocos que estão lá em cima nos coqueiros?
- Com esta corda de sisal que sobrou, eu vou lá cima arrancar dois cocos para nós beber os leite.
- Tu queres morrer, é? Estás maluco?
- Não morrer nada. Espera pouco.
Então o Zambézia pegou no bocado da corda de sisal que tinha sobrado, amarrou as pontas a cada um dos pés e fazendo dos anéis do coqueiro degraus, aí fixava a corda e foi-se elevando coqueiro acima até ao topo. Arrancou dois cocos que cairam a meus pés e, ainda mais depressa que subiu, desceu. Com uma pedra tirou-lhes a palha e, daí a pouco, já nos tínhamos deliciado com a água de coco e trincávamos, preguiçosamente, deitados no chão, pedaços de coco. A manhã passou a correr. No pequeno cais que havia em Pebane, a sirene tocou. Era meio-dia.
- Olha Zambézia, tenho que ir porque a minha mãe disse-me para ir almoçar quando tocasse a sirene.
- Está bem! Eu vou com tu. Depois de comer tu vem brincar outra vez comigo?
- Venho! Mas só depois das três horas. Até logo!
- Até logo!
Entrei em casa esbaforido:
- Mamã, mamã! Quero-te contar o que aprendi esta manhã com um menino preto.
- Faz pouco barulho filho. O teu irmão já está a dormir a sesta. E, além disso, tínhamos combinado que falávamos depois do almoço, lembraste? Anda, agora vai lavar a cara e as mãos para almoçarmos. Como sabes, o pai só vem jantar. Hoje vai passar o dia todo no mato.


Fim do 2º Episódio


Manuel Palhares

Odivelas, 15 de Setembro de 2005.

As minhas aventuras em Pebane - I


Episódio Nº 1


Estávamos em Moçambique, no ano de 1955, em Pebane, ao norte de Quelimane.
Eu tinha 10 anos.


Os passáros cantavam e saltitavam na árvore junto à janela do quarto e eu inspirei fundo e a satisfação do ar a encher-me os pulmões era enorme. Era um despertar doce, afagado pelos pássaros e pelos cheiros que entravam pela janela. A aurora ainda estava a terminar e o sol já espreitava. Em África o dia e a noite não faziam cerimónias para aparecerem. Anuciavam-se e aconteciam em meia hora. Eram de partos rápidos. Como quase tudo o que acontecia naquela terra, tudo nascia e crescia depressa. Espreguicei-me e acabei de acordar, feliz! Lá fora, à sinfonia dos pássaros, juntava-se agora o ladrar dos cães. Era um ladrar bem disposto e brincalhão. Chegava agora até mim um dos cheiros mais deliciosos que eu conhecia àquela hora da manhã – o cheiro a pão acabado de cozer, no forno de lenha feito de barro! Pulei da cama com uma enorme alegria pelo nascer de mais um dia. Uma pequena preocupação passou-me pela mente – não ia ter tempo para fazer tudo o que desejava num só dia. Mas depressa me esqueci disso com a chegada dos cães, que entretanto tinham entrado pela porta da cozinha, quando o cozinheiro regressou com os pães acabados de cozer. A nossa alegria, pelo reencontro da manhã, era igual a que sentíamos quando já não nos víamos há uns tempos! Mas que saudades demonstrávamos por termos estado umas horas sem nos vermos! Quase me deitavam ao chão e rosnavam uns aos outros, querendo cada um deles o privilégio de ser o primeiro a cumprimentar-me. Eu sentava-me no chão e abraçava-os a todos e apanhava com a primeira lavadela de cara, tantas eram as lambidelas. Depois íamos em excursão para a casa de banho, onde eles ficavam à porta, enquanto eu tomava um duche e lavava os dentes. Tudo isto a correr! Tal era a pressa que eu tinha, porque o tempo era pouco, para tantas coisas que eu tinha que fazer. A minha cabeça não parava de inventar reinos para eu reinar e explorar – aumentava-me os domínios e eu sonhava acordado!
- Bom dia filho! – dormiste bem?
- Bom dia mamã! Dormi muito bem! Queres que te conte com o que sonhei esta noite? – perguntei eu a minha mãe, enquanto ela ia ajudando o meu irmão a tomar o pequeno almoço. Eu tinha sempre coisas para contar à minha mãe, fossem sonhos ou não.
- Mais logo querido! Se não te importas. Agora estou a tratar do mano. Depois do almoço, está bem?
- Está bem mamã! Conto-te logo.
- Andas sempre com esses cães atrás de ti! Enquanto tomares o pequeno almoço a meias com eles, não te largam!
- Não fiques aborrecida, mamã. Eles gostam muito de mim.
- Isso sei eu! Mas é de mais.
- Bem mamã, agora tenho que ir. Tenho muito que fazer hoje!
- Calculo, calculo!
Levantei-me, dei um beijo na minha mãe, fiz uma festa ao meu irmão e já de costas atirei um “Até logo!”
- Até logo, até logo! Tem cuidado, vê lá por onde andas! – ainda ouvi a minha mãe dizer.
Cá fora, já à minha espera, estava um menino negro, mais ou menos da minha idade, que entretanto fazia festas aos cães.
- Olá! Olá! – gritei-lhe eu.
- Olá! – respondeu ele, olhando-me de alto a baixo. Tínhamo-nos conhecido no dia anterior e combinámos brincar no dia seguinte. Ele era filho de um empregado da casa ao lado daquela onde estávamos hospedados. Ele continuava a olhar para mim, mirando-me.
- Que foi, para onde estás a olhar?
- Estás engraçado tu!
- Engraçado! Eu? Porquê? – retorqui eu, mirando-me desconfiado.
- Esse teu chapéu, esse teu óculo, esse teu faca, esse teu espingarda, esse teu sapato! Tudo bonito! Aqui não tem essas coisas. Eu não tenho...
Eu apareci-lhe com aqueles chapéus de caqui coloniais, com tiras de cabedal castanho, umas fivelas cromadas e uns respiradores laterais de rede metálica dourada. De óculos escuros, de armação branca e lentes verdes, e de sandálias. No cinto, um pequeno punhal, e na mão uma espingarda de lata que tinha na extermidade do cano, no sítio de saída das balas, uma rolha de cortiça presa a um cordel, o qual por sua vez estava fixo à ”arma”. A espingarda armadilhava-se dobrando-a ao meio, o que fazia recuar um êmbolo, o qual, ao pressionar-se o gatilho fazia a rolha disparar. Estava equipado como um caçador para um safari! Ele, o menino negro, estava de tronco nu, com uns calções de pano finos e gastos, de cor indefinida e descalço.


Fim do 1º Episódio


Manuel Palhares

Odivelas, 14 de Setembro de 2005.

O DOUTOR ÂNGELO


Delim,dlim,dlim,...(1)
Delim,dlim,dlim,...
Quem é? Quem é?
É uma guitarra que veio de Coimbra
É a guitarra do Ulisses a chorar.
E por quem chora ela?
Chora por todos nós:
Chora pela juventude perdida,
Chora pela nossa alegria,
Chora pela nossa amizade,
Chora pela nossa tristeza,
Chora pela nossa saudade,
Chora pela nossa vida,
Chora pela nossa morte,
Chora pelo doutor Ângelo,
Porque as guitarras choram.
E quem era o Ulisses?
O Ulisses era um amigo,
Era o tesoureiro da Universidade.(2)
E quem era o doutor Ângelo?
O doutor Ângelo era muitas coisas:
Era acima de tudo um ser humano maravilhoso,
Era um Homem que amava a vida,
Era uma pessoa benevolente e amável,
Era bem disposto e muito prestável,
Era investigador de botânica da Universidade,
Era o director da Residência Universitária,
Era um exímio jogador de badminton,
Era o amigo, era o companheiro,
Era mesmo o nosso irmão mais velho,
Era quem tinha de ouvir os vizinhos e a polícia,
Era o muro, a parede, o escudo,
Era quem nos aturava e defendia de tudo,
Era quem tinha paciência de santo,
Era tudo isto e muito, muito mais...
Até que um dia cansou-se de nós
E resolveu casar e sair da residência!
Ó meu querido doutor Ângelo,
Tu que já partiste, porque Deus te quis levar,
“ Se lá, no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,” :
Obrigado por tantos momentos bons,
Obrigado por tanta condescendência,
Obrigado por teres esse enorme coração,
Obrigado e perdão...
Obrigado e perdão...
Delim, dlim, dlim...
Delim, dlim, dlim...


Manuel Palhares

Odivelas, 7 de Setembro de 2005.

(1) – Período da acção: 1967 a 1971.
(2) – Universidade de Lourenço Marques em Moçambique.


* Imagem cedida por Tininha Noronha Marques.

segunda-feira, janeiro 30, 2006

Carta Aberta ao Povo Moçambicano


Divagando em roda livre, sem olhar para écran, vou solto e acelerado, atrás do meu pensamento. E por mais esforços que eu faça, nunca o consigo apanhar! Vai mais à frente, para minha desgraça, e não me deixa, nem permite que o emende, que o corrija para o social e politicamente correcto. Com ele não há censuras nem hipocrisias: ele é que puro e concreto! A única coisa que me permite é que o ouça a pensar, e já é um previlégio que me deixe ouvi-lo divagar.
Sendo assim, que ouço eu, quando o meu pensamento se põe a cogitar? Voçês nem queiram saber o que para ali vai! Não consigo reter tudo, apenas uma parte pequena e portanto aqui fica o que consigo apanhar, quando febrilmente o escuto.
Sabem no que está agora ele a pensar? É obvio que não! Mas eu vou contar.
Neste preciso momento está a pensar em nós que andamos por estes sites de Moçambique com saudades. Pensa que temos pena de ter deixado aquele paraíso que pensávamos que era nosso e aquele modo de vida mais ou menos desafogada e tão despreocupada. Lá viveram sem preocupações os bisavós, os avós, os pais e nós. Aquilo era realmente bom e quase nada nos faltava! Mas com o que se admira o meu pensamento é que em mais de quarenta sites, ninguém se interroga porque era assim! Ninguém neles se interroga quem eram os alicerces dessa sociedade que foi vivida por nós. Como é possível que em tantos milhares de mensagens, em tantas fotografias, quase não haver uma pequena referência aos pilares da nossa felicidade? De que eram eles feitos, de betão e de ferro? Não, eram de carne e de osso, mesmo iguaizinhos a nós! É verdade! Acreditem! Tinham braços tinham pernas e cabeça para pensar. Era a eles que eu gostava que elevássemos a nossa voz. Àqueles que desbravavam matos, construindo as picadas, às ordens do chefe do posto; construindo estradas e pontes e caminhos de ferro também, às ordens dos engenheiros. E construiram as cidades para nós podermos viver. Não se esqueçam meus amigos que não sou eu que vos fala, apenas aqui reproduzo o que vai no meu pensamento, o que consigo apanhar, porque, como sabem, ele é mais rápido que o vento.
Mas voltando ao povo anónimo, ao negro moçambicano, ainda consigo ouvir o meu pensamento dizer algumas coisas mais. Diz ele que era esse povo que pescava e cultivava os campos, às ordens do mestre do barco, às ordens do machambeiro. Pescava e cultivava produtos que não tinha dinheiro para poder comprar! Limpava as ruas das cidades, as casas, as escolas, os hospitais e outras coisas mais… Locais onde não vivia, nem usava! Cozinhava para nós, sevia-nos à mesa e lavava a nossa roupa. Servia-nos em cafés e também nos restaurantes e em casa só comia peixe e miolo de camarão seco com farinha de milho, quando comia. O meu pensamento está agora a pensar se vocês já tinham pensado nisto?! Mas como é muito rápido, já vai longe e eu a correr para o poder ouvir. Ele agora está a pensar em colos maravilhosos, fofos, doces, cheirosos e macios que nos embalavam para nos adormecer, onde descansávamos, onde dormíamos, onde comíamos, onde chorávamos quando estávamos doentes: eram os corpos das “macaaias” que tomavam conta de nós. E mesmo naquela desporporção entre salários médios: entre os seis mil escudos do colono e assimilado (30 euros) e os trezentos ou quatrocentos escudos do negro trabalhador (1,5 / 2 euros), isto nas principais cidades, porque lá para o mato era pior – aquela gente era amável, até gostava de nós! É verdade, por muito que pareça incrível! É assim o meu pensamento, como não respira, não pára para o fazer, mas eu que sou um pobre humano estou sem fôlego para o seguir... Lá está ele, já o estou a ouvir! Nem todos os colonos viviam bem, sem dificuldades. É verdade! Alguns até passavam mal. É verdade! Mas na percentagem fria dos números, nisso de passar mal, a desporporção era enorme! Era de um para vinte! E todos sabem isso, mesmo que o queiram esquecer. E é isto que me admira quando vejo tanta vontade em recordar o passado e em lá ir visitar essa terra de Deus, esse Éden do Índico! Mas quanto ao falar no seu povo e até fotografá-lo, tão pouco ou quase nada! Porquê? Porquê? Porquê? Esse povo tão amável que até chorou por nós. Não era só o “madala”, com a sabedoria no cã, mas mesmo o mais novo, que diziam e até temiam a partida dos colonos!? Porquê? Porquê? E alguns de nós lhes dizíamos que para eles ia ser bom! Iam ser independentes, tomar conta do seu destino, iam ter essa palavra que enche ouvidos a muitos povos, mas que não mata a fome, nem enche barriga – iam ser livres, iam ter a liberdade! E alguns, aqueles que nos sentiam amigos, lá nos iam sussurando: - Agora como vai ser? O branco vai embora e a gente como fica? Vem aí o “mabandido” que quer o engajamento e nosso tem medo! Nosso tem mulher e filhos... Vai ficar sem emprego! Como vai ser? Como vai ser? – diziam esfregando a cara de mão espalmada, com os cinco dedos abertos, alguns deixando correr lágrimas por aquela face curtida pela vida sofrida.
E para lá ficaram e lá estão. Alguns até se escrevem connosco durante todo este tempo. Quantos pediram até para os trazermos para cá...!?
E lá estão entregues à má sorte desta vida desigual. Para uns tudo, para outros nada!
E nesse paraíso criado por Deus, entregue a “elites” e sempre, sempre, com o apoio das forças armadas, elas, as “elites” e também as forças armadas, cometem crimes de bradar aos céus – a corrupção é impensável de imaginar, até para mim que sou o pensamento de quem vos escreve! E o povo anónimo, aquele que nos amaciou a existência, continua sem nada, sem nada, nada, nada,...Bem, esse povo do Moçambique real e profundo, tem secas, tem fome, tem miséria, tem doenças e tem acima de tudo a prepotência e cobardia das fardas, os desmandos do poder! Penso, e julgo não me enganar, que também muitos de vós pensam assim! Mas é preciso gritar é preciso dizê-lo! Que nesta aldeia global a mensagem é apanhada mais depressa do que se pensa! E.. “Água mole em pedra dura, tanto dá até que fura!” .
Há dias atrás, andou para aqui editado, um texto do Mia Couto, que serve de uma espécie de guru, para alguns que tanto o admiram – ah! o politicamente correcto é por vezes tão falso e hipócrita, mas dá tanto jeito para as nossas pequenas vidinhas – mas, dizia o meu pensamento, nesse texto Mia Couto contava, como se sentiu embaraçado quando um amigo estrangeiro, que estava de visita a Moçambique, lhe perguntou se era seguro ir dar um passeio a pé ou de carro pelos arredores do hotel e pelas partes nobres da cidade, supostamente mais seguras. E ele gaguejou, gaguejou, envergonhado, sem saber o que responder, até que o tal amigo estrangeiro, ao perceber o seu embaraço, o tirou daquela angústia, dizendo: - Pensando melhor vou ficar aqui mesmo pelo hotel! Foi simpático o senhor, não foi? E Mia Couto confessa, que até ele teve também vontade de se mudar para o hotel! Isto passou-se agora, há dias, em MAPUTO, onde se rouba de mão armada e violam-se pessoas na marginal, em plena luz do dia! – é ele, o Mia Couto, que o diz!
Ai este meu pensamento, o que ele lê o que ele ouve!
Bem! Estou cansado de correr atrás do meu pensamento. Parei, deixei-o seguir. Ele, como é tão rápido, tão veloz, não tarda em voltar atrás, para me atormentar com aquilo que o ouço pensar. Mas que hei-de eu fazer? Não posso libertar-me dele...


Manuel Palhares

Odivelas, 4 de Setembro de 2005.


* Imagem representando a Magna Carta, retirada de: http://www.archives.gov/exhibits/featured_documents/magna_carta/ .

domingo, janeiro 29, 2006

O meu primeiro amor

Quase há cinquenta anos atrás eu conheci uma menina que foi muito especial para mim: foi o meu primeiro amor!
Conheci-a no liceu quando tinha treze anos. Chamava-se Ana Maria. E como era linda! Pelo menos para mim era muito linda, pronto! Pele branca, olhos e cabelos castanhos. Era muito simpática, nada afectada e com o seu lindo sorriso não me afastava, antes pelo contrário, incentivava-me. Eu, inseguro e que não queria levar uma tampa, lá consegui saber por uma amiga sua, que ela simpatizava comigo.
O nosso liceu era misto e não era. As aulas só eram mistas no 6.º e 7.º anos, mas os recreios eram separados. Então só havia uma maneira de trocar umas palavrinhas: à entrada ou à saída, no parque de estacionamento, e no intervalo de vinte minutos na cantina. Nunca comprei tantas bolas de berlim como naquela altura! Para oferecê-las a ela, que por vezes aceitava. Trocávamos palavras de circunstância um pouco a correr, até que um dia lhe perguntei se lhe podia escrever uma carta. Ela disse que sim, ela disse que sim! Agora eu já não podia voltar atrás. Escrevi-lhe um testamento onde lhe explicava, de mil maneiras diferentes, o meu amor pré-adolescente por ela, a minha paixão. Isto com direito também a uma fotografia minha. Ela aceitou logo o namoro, não se fez de difícil. Como no liceu quase não podíamos falar, trocávamos uns bilhetinhos, que chegavam até nós por correios de ambos os sexos, também com a nossa idade. Mas aquilo não bastava, assim não era bom!
Calhava eu ter explicações em frente à casa de uma amiga comum. E nos dias de explicação, à tarde, ela vinha estudar com a nossa amiga. Não a encontrava à entrada para a explicação, mas à saída, que coincidia com a hora do lanche. Lá estavam ela e a amiga, no jardim, juntinhas ao muro baixo a conversarem. E eu, quando saía da explicação, por ali tinha que passar. Eu arranjei um amigo, para também não estar ali sozinho, salvo erro foi o Zé Roca, mas não tenho a certeza. O Zé Roca foi o meu primeiro amigo em Moçambique, tínhamos seis anos quando nos conhecemos e andávamos quase sempre juntos. Bom! Mas isso agora não é muito relevante. O que interessa é que cada um de nós, os namorados, tinha um “pau-de-cabeleira”. Os olás do costume, os “paus-de-cabeleira” afastavam-se um pouco e punham-se a conversar, deixando-nos entregues a uma certa privacidade. Então sim, conversávamos os dois! Eu elogiava-lhe os olhos, o sorriso, os cabelos, o nariz, as orelhas e o queixo, e ela ria-se nada afectada, com os olhos brilhantes e uns dentes lindos! Era a sua maneira de me agradecer. Depois ela colocava a sua linda mãozinha no muro, casual e despreocupadamente (?) e eu nada casual e nada despreocupado, também lá colocava a minha mão. Aquilo requeria um certo treino. Ao colocar também a minha mão no muro, esta não podia cair pesadamente em cima da dela, tinha que ficar ao lado da sua a roçar-lhe levemente. Eu não sei o que ela sentia. Mas eu sentia uma euforia e um pequeno arrepio. Mas que bela sensação! Depois, ao fim de uns minutos, eu, gentilmente, pegava-lhe no pulso onde ela tinha o relógio e fingia ver as horas e ela sorria, sorria e eu sentia, sentia... E assim foi o início do nosso amor, no ano de 1957. E tudo corria muito bem, até que, certo dia, quando chego ao liceu, por volta das 6h50m, acabo de despertar, com alguém a chamar por mim no parque de estacionamento:
- Ó Palhares, ó Palhares! Anda cá, depressa!
Era voz de mulher! Voltei-me e deparo com uma das professoras mais eficientes e também das mais temidas pelos alunos, a minha professora de Físico-Químicas! Apressei o passo e a senhora, naquele seu vozeirão, disse-me:
- Toma lá isto, que nós lá em casa não precisamos destas coisas!
Eu fiquei petrificado. Na sua mão estava a minha volumosa carta. Disse-me mais qualquer coisa do tipo, “A brincadeira acaba aqui”, mas eu já não ouvia nada. Voltou-me as costas e dirigiu-se para a entrada principal do liceu por onde entravam os professores e eu cabisbaixo, contornei um ginásio, pois os alunos entravam no liceu por acessos laterais. Ninguém presenciou esta cena, fui apanhado na tocaia... e dali a poucos segundos ia ter aula com esta professora! Eu estava numa agonia.
Estarão agora vocês a perguntar: “Mas o que é que tinha a professora a ver com todo este assunto? ” Certo?
Pois a senhora era prima direita do pai da minha namorada e como era solteira, vivia lá em casa. A mãe da minha namorada mostrou-lhe a carta que a filha lhe tinha dado a ler, por até ter achado graça e ela, a professora, ao lê-la e ao ver a minha fotografia, já não a devolveu e teria exclamado qualquer coisa como “Eu amanhã resolvo isto!”. E efectivamente resolveu. Estávamos no primeiro período do meu 3.º ano do liceu. Nunca estudei tanto Físico-Químicas como nesse ano. As minhas médias aritméticas foram, nos três respectivos períodos: 14, 15 e 16. As notas que a professora me deu foram: 13, 14 e 15. Ou seja «roubou-me» um valor por período. Isto teve uma vantagem, fiquei a gostar para sempre de Física e de Química. Porém não pensem que o namoro terminou, nada disso. “Deus é grande e escreve direito por linhas tortas”. O namoro até ficou melhor, mais saboroso, mais conclusivo, com mais finalmentes. Como? Porquê? Eu conto.
Ao vagar um andar por cima do nosso, numa casa que tinha uma ponte, entre o Oceana e o Grande Hotel, foi para lá morar uma família com os filhos ainda pequenos. Acontece que essa família era muito amiga dos pais da minha namorada e os dois casais iam ao cinema juntos e deixavam os filhos entregues ao cuidado da criada do meu vizinho. Pronto! Tantas cautelas e foram deixar a “ovelhinha” a dois lances de escada do “lobinho”! Ora as habitações tinham duas entradas: a principal à frente e a de serviço atrás. Com tanta criança para tomar conta, a criada preocupava-se, principalmente, com os mais pequenos. E com a conivência da filha mais velha do meu vizinho e do meu “cunhado”, irmão da minha namorada, que ficavam atentos, distraíam a criada e, se fosse preciso, davam o alerta, nós passámos a namorar mais a sério. No patamar da escada de serviço que ficava entre o 1.º e 2.º andares .
E... e o que é que vocês querem saber mais, seus curiosos? Durou pouco mais de um ano este amor, porque o pai da minha namorada foi transferido e a família saiu da Beira. Nunca mais vi a Ana Maria, nem soube mais nada dela!
Durou pouco? Durou! Mas foi o meu primeiro amor. Qual de vós já se esqueceu do seu?
Fiquem bem!


Manuel Palhares

Odivelas, 29 de Agosto de 2005.

História de Portugal Revisitada - Versão 2005


Eu tenho muitos amigos
Que não sabem que o são,
Por incrível que pareça
Nem me conhecem até!
É que eu sou amigo dos pobres,
Dos sem tecto e sem abrigo,
Dos deserdados da sorte,
Dos bastardos desta vida:
Daqueles que nos incomodam
Quando os vemos passar!
É o mundo que criámos
Todo em chagas, todo em feridas:
São as crianças sem pais
Que se arrastam pelas ruas,
Pelas veredas frias
Da sua pobre existência,
Aquelas que deviam estar
A cargo da previdência.
Mas neste virote constante,
Neste abastardar da ética,
Quem quer saber de crianças?
Quem se incomoda, quem se importa,
Com a ética e com a moral?
Quem pode ainda acreditar
Em presidentes, ministros e deputados
Em autarcas de Câmara ou de Junta
E em todos os seus delegados?
Perguntem aos pobres velhos
O que é que lhes dói mais:
Os problemas da saúde e da idade,
Ou os da falta de dignidade?
Todos os tratam mal
Com falta de educação:
É o médico, é o juiz,
O banco que lhes paga a pensão.
É a segurança social
Quem lhes verga mais a espinha,
Quando os obriga a ficar
Noite fria às esquinas,
Para lhes sortear umas senhas
Para os merdas da medicina.
Isto ainda é uma Nação,
Mas já não é um Estado!
Que esperam que nos aconteça?
Até os espanhóis, que nos compraram,
Já estão agora a vender.
Mas como é possível que um povo
De um pequeno país,
Que já deu mundos ao Mundo
Tenha batido no fundo?
Um povo onde nasceu:
Afonso e Sancho, os primeiros,
Afonso o terceiro e Diniz,
O Mestre e o Condestável,
Esteja neste estado lastimável?
Um povo de navegadores
De coragem indomável...
Um povo que teve o segundo João
Que assinou tratados geniais
De fazer inveja aos políticos actuais:
Que com Tordezilhas nos deixou o Brasil,
E o resto aos demais.
Tivemos um Gama, um Cabral e um Albuquerque!
Um povo que teve Camões,
Que disse que morria com a Pátria,
E a Pátria morreu com ele.
Cá nasceram Herculano e Garrett
A geração de setenta, a dos vencidos da vida:
Gerra Junqueiro, Oliveira Martins, Eça de Queirós
E esse único, singular e inigualável,
Esse puro e verdadeiro Antero de Quental.
Pátria desse inimitável Camilo,
De Cesário Verde e de António Nobre.
Quem é que pode acreditar
Nestes governantes fantoches?
Um povo que ainda teve:
Pessoa, José Régio, Eugénio de Andrade.
E que ainda hoje coloca
Entre os 250 melhores cientistas do mundo:
António Damásio, António Coutinho e Carlos Duarte.
Este último, cansado deste “fartar vilanagem”,
Com receio que lhe estragassem a vida,
Naturalizou-se espanhol e mudou-se para Espanha!
Realmente já somos apenas uma Nação:
Porque o Estado já caíu.
Como diria José Régio:
Vai de rojo pelo chão!
E sabem o que nos resta
Desta Pátria exangue e moribunda?
Aquilo que previa Fernando Pessoa:
“A minha Pátria é a Língua Portuguesa”!
Caíu de podre o regime,
Que governou meio século,
Este povo conformado, resignado e triste.
E quando se viu solto e livre,
Das correntes que o prendiam e amordaçavam,
Não soube aproveitar a sorte,
Deitou-se de barriga para o ar:
Passeios, banhos de sol e de mar!
Que isso de trabalhar agora,
Era bom só para os outros:
A Europa até nos pagava,
Pagava que se fartava,
Para deixarmos de trabalhar,
Para deixarmos de produzir.
Agora é um “Ai Jesus”
Com as firmas a falir:
Não há trabalho, há desemprego.
Mas tudo se resolve
Com o recurso ao empréstimo:
Com dez ou vinte cartões de crédito,
Nada disto é anormal,
Nada disto é inédito!
Depois levanta-se aqui,
Para ir pagar ali.
E assim se vai vivendo:
Ninguém vê esse mostrengo
Que nos vai minando a Pátria.
Corrupção, roubos à descarada,
Nem com os conflitos de interesse
Se importa a macacada.
Acumulam autarquias, com metros e futebóis:
O que faz falta e é preciso
São empregos para os “boys”.
Não sabem nada de banca,
Nem sabem nada de petróleos?
Que interessa? Que importa?
“O povo deu-nos o poder!
Então é nosso dever,
É mesmo obrigação,
Fazermos cá entre nós
Esta sábia distribuição.”
E se correr mal, paciência,
Não foi inépcia nossa, foi azar!
Vamos embora para fora,
Vamos também para a Europa!
E quem cá ficar que se lixe:
Entreguem esta coisa de novo à tropa!
Essa quer submarinos, helicópteros e canhões,
Muitas medalhas no peito, barcos e aviões.
Estou admirado, como ainda não pediram,
Para brincarem também, um porta-aviões!
Não um daqueles a diesel ou energia solar(1) :
Comprem logo um mais moderno,
Movido a energia nuclear!
Uma Ota e um T.G.V.?
Que disparate ser tão pouco:
Façam logo duas e três!
Para quando isto estoirar,
Também podermos cavar,
Com um tachinho de “iscas com elas”(2)
Para comer no caminho.
Ah! Já me esquecia do vinho!
Vamos de mão estendida,
Para as esquinas de Bruxelas!


(1) - Haverá? Não deve haver...
(2) - O menu pode variar. Também podem ser jaquinzinhos ou pasteis de bacalhau! Porém já não rima com Bruxelas. Mas quem é que nesta altura se vai preocupar com rimas?!


Manuel Palhares

Odivelas, 2 de Setembro de 2005.


Anexos:

Anexo 1:

Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

Luís de Camões – Lusíadas

Anexo 2:

Heróis do mar, nobre povo
Nação valente, imortal,
Levantai hoje de novo
O esplendor de Portugal!
Entre as brumas da memória,
Ó Pátria, sente-se a voz
Dos teus egrégios avós,
Que há-de guiar-te à vitória!

Alfredo Keil (música) / Henrique Lopes de Mendonça (letra) – A Portuguesa: O Hino Nacional!


Pergunta final!

Por que razão é que nos ensinaram estas coisas?
Fiquem bem!

M.P.

A Guida e o Amadeu




Que saudades que eu tenho
De dois amigos que tive.
Um foi na flor da idade
A outra um pouco mais tarde.
Ele chamava-se Amadeu
Ela era a Ermelinda.
Éramos tão amigos...
A ele conheci-o primeiro
Desde a escola primária.
Ela conheci-a mais tarde
Já a largar o liceu.
Com ele nunca me zanguei,
Com ela por vezes discutia.
Dava tudo o que tenho
Para lhes dar de novo a vida.
Com ele fui escuteiro
Fizemos acampamentos
Fizemos longas viagens
Até para fora de Moçambique...
Com ela discutia Camus e Sartre
E seus existencialismos
E quando a irritava
Gritava-me siderada:
- Vai à merda Manel!
Eram ambos muito inteligentes
Embora muito diferentes:
Ele calmo, mas alegre
Ela mais nervosa e arisca.
Numa coisa porém eram iguais:
Eram ambos reservados
Com um coração enorme.
E como tudo tem um nome nesta vida:
A ele tratava-o por primo
A ela por Guida.
Não sei porquê
Mas não nasceram para ser felizes:
E porque eram reservados
Viveram acompanhados
Por uma enorme solidão!
Ele suicidou-se antes dos quarenta
Ela morreu minada de doenças...
Hoje que os não tenho
Zango-me com os dois:
- Porque foram? Porque partiram?
Porque me deixaram a memória?



Manuel Palhares

Odivelas, 2 de Agosto de 2005.


* Imagem cedida por Tininha Noronha Marques.

O Senhor Doutor Blanche

Filho de uma sueca e de um francês que se conheceram no Porto, o Senhor Doutor Blanche aí nasceu e aí estudou. Inteligente, aprendeu com os pais a democracia, a tolerância e uma abertura de espírito invulgar para a época. Fez a sua formação num Porto liberal e aderiu aos ideais da Primeira República. Profissionalmente, licenciou-se em germânicas e seguiu a carreira universitária, chegando ao seu topo, a professor catedrático da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Era da sua autoria a que era considerada a melhor gramática de alemão editada em Portugal. Depois da sua morte, houve editoras que solicitaram à sua viúva a reedição da gramática.
Como muitos outros portugueses o Sr. Dr. Blanche não vendeu a sua alma ao Dr. Salazar e foi deportado para Moçambique, para a cidade da Beira, juntamente com a mulher e mais os seus sete filhos. Isto nos fins da década de trinta. Muitas dificuldades passou a princípio mas como era um homem prático resolveu abrir um colégio. Juntamente com os filhos mais velhos pôs mãos à obra e o colégio foi um sucesso numa terra onde, para além do ensino primário, a continuação da formação escolar estava entregue a religiosos.
Moçambique foi sempre uma miscelânea de multiculturalidade – tema sobre o qual, hoje em dia, está muito na moda falar – e a Beira não era excepção. Lá, com os africanos e os portugueses, conviviam, com as suas escolas, igrejas, centros culturais, desportivos e de lazer: espanhóis, italianos, ingleses, alemães, sul-africanos, gregos, indianos e chineses. Para além de toda a miscigenação que os portugueses sempre foram tão hábeis em fazer... Na generalidade, os elementos destas colónias tinham uma boa situação financeira e queriam que os seus filhos estudassem para além do ensino primário. Porém, não lhes agradava muito que os filhos frequentassem os colégios religiosos portugueses. Assim, o colégio do Sr. Dr. Blanche, com um director democrata, republicano e ateu, era o ideal para a continuação da formação escolar dos seus filhos. E assim aconteceu durante uns anos... Mas, mesmo lá longe, Salazar, através da “sua” P.I.D.E., mandou-lhe fechar o colégio. A família que entretanto tinha crescido com o casamento dos filhos e o nascimento dos netos, encolheu-se, apertou-se, compartilhando as mesmas casas, tentando sobreviver. O Sr. Dr. Blanche não desistiu. Com a mulher e os filhos solteiros, alugou uma casa e passou a viver de explicações com muito êxito.
Eu conheci o Sr. Dr. Blanche logo que cheguei à Beira. Conheci-o em casa de um dos seus filhos, de quem o meu pai era amigo e do qual tinha sido colega no Instituto Industrial do Porto. Ora acontece que quando o meu pai conseguiu alugar a nossa primeira casa na Beira, coisa difícil em 1951, passámos a ser vizinhos do Sr. Dr. Blanche: uma parede dividia as nossas salas de estar, um muro de cinquenta centímetros separava os nossos jardins. Os meus pais ficaram muito contentes porque viam no Sr. Dr. Blanche e Esposa uns segundos pais. E eu uns avós... Por essa altura eu fiz os sete anos e fui frequentar a primeira classe da instrução primária, no Colégio Nossa Senhora dos Anjos. Como o nome deixa adivinhar – um colégio de religiosas. Quando fui para o colégio, eu já rezava algumas orações ensinadas pela minha mãe mas no colégio passei a frequentar a catequese e a preparar-me para a primeira comunhão. E foi a partir dessa altura que eu e o Sr. Dr. Blanche passámos a ter as nossas primeiras divergências – um miúdo de sete anos e um homem de quase setenta! Ele com o seu cabelo branquinho, os olhos vivos e um sorriso bondoso, ria que se fartava quando me arreliava:
- Olha lá, ó Manuelzinho! Conta-me cá o que é que aquelas velhas, vestidas com lençóis te ensinam!
- Não são nada velhas! – retorquia eu arreliado – e não são lençóis, são hábitos!
- Ah! São hábitos?! E que te ensinam essas beatas para além de rezar: “Nosso senhor rilha o osso!” e “Avé Maria, lava os pés em água fria!” ?
- Ó Pierre! Não arrelies o menino! Anda cá Manuelzinho! Anda cá comer uma fatia do bolo que eu acabei de fazer – exclamava a sua doce Albertina.
Eu, rubro de cólera, quase a explodir:
- Vou fazer queixa à minha mãe!
E ele ria, ria até às lágrimas. Depois abrandava o riso, punha-se sério, parecia até ficar triste e falar mais para si do que para mim:
- Ó Manuelzinho! Como era bom que existisse deus! Não esse Deus prepotente, injusto, vingativo e cruel de que falam as escrituras. Mas outro diferente, realmente omnipotente e omnisciente, para endireitar isto cá em baixo...
Ficava por uns segundos pensativo mas voltava-lhe depressa aquele brilho ao olhar:
- Vai Manuelzinho, vai ter com a Albertina que está à tua espera para comeres o bolo – dizia ele afagando-me os cabelos.
Inteligência fina e rapidíssima tinha o Sr. Dr. Blanche. E sempre e acima de tudo amante da liberdade: da liberdade de pensamento, da liberdade de opinião, da liberdade de expressão, da liberdade “tout court”. Até o seu cão daquela altura, com quem eu brinquei, se chamava Ipiranga! E a propósito do cão Ipiranga...
- O que é que queres rapaz? – perguntou o Sr. Dr. Blanche ao empregado de uma vizinha.
- Senhor Doutor, a minha Senhora está a dizer para o senhor Doutor não deixar o Ipiranga ladrar, porque o menino está a dormir.
- Olha rapaz, vai dizer à tua Senhora, que eu disse, para ela não deitar o menino quando o cão está a ladrar!
Outra vez, num jantar de cerimónia, uma senhora endinheirada, sem grande instrução mas cheia de vontade de protagonismo, virou-se para ele com a taça de champanhe na mão e exclamou:
- Senhor Doutor! À saúde dos que querem mas não podem!
Respondeu-lhe prontamente o Sr. Dr. Blanche:
- Eu, minha Senhora, saúdo àqueles que podem mas não sabem!
Era assim este grande Homem e a sua adorável Esposa. Sem nunca vergar a espinha, foi ensinando aos seus alunos e explicandos, a rigidez de carácter, a força da palavra e a alegria da liberdade.
Os seus filhos estabeleceram-se, tiveram sucesso e sempre mimaram muito aqueles pais tão singulares. Quase todos os seus netos se licenciaram. São pessoas inteligentes, profissionalmente realizadas e com a ética nos genes.
O Senhor Doutor Blanche chegou ao fim da sua vida deitado na sua cama e rodeado por familiares e amigos. Eu também lá estive com o meu pai. Tinha doze ou treze anos.
A sua doce Albertina, que em determinada etapa da sua vida, já depois da morte do marido, conseguiu ultrapassar um AVC e três semanas de coma, voltou a viver a vida com alegria e rodeada de muito amor. Ainda regressou a Portugal, ao fim de quase quarenta anos, e cá viveu quase até aos cem anos.


Manuel Palhares

Castelo Branco, 6 de Agosto de 2005.

* Os nomes são fictícios para manter a confidencialidade da família “Blanche”.

Cigano em Moçambique


Cigano eu fui em teu corpo
Vagabundo em todos teus lugares...
Amei-te com sofreguidão
Amei-te até à exaustão
Amei-te com tal paixão
Daquela que vem directa
Cá de dentro do coração
Sem passar pela razão.

Alegre, terna, suave e doce
Fazias com que eu te amasse
Mais e mais, e mais ainda,
Como se tal possível fosse!

Quando te colavas ao meu corpo
Deixavas teus braços escorregar
Lentamente e devagar pelos meus
E assim deitados ficávamos
Com os braços esticados
Os teus por cima dos meus!

Foi este amor louco, sincero
Sem limites, sem fronteiras
Sem arrependimentos, sem enganos
Foi este amor sem barreiras
Que fez que eu fosse
Em ti, no teu corpo,
Um tresloucado cigano!


Manuel Palhares

Castelo Branco, 14 de Agosto de 2005.

Histórias do meu Liceu


Andávamos nós muito satisfeitos, o que não era difícil naqueles tempos, quando rebentou a bronca.
- Dá-me licensa Senhora Doutora?
- Faça favor Senhor Borges, passa-se alguma coisa?
E o chefe do pessoal menor do Liceu, imaculado na sua farda branca, avançou em direcção à secretária da professora e segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido.
- O aluno Manuel Palhares acompanhe o Senhor Borges à Direcção do 3º Ciclo – disse a professora. Todos olharam para mim. “O que foi? O que foi? O que é que fizeste? – perguntavam-me os colegas.” E eu encolhia os ombros, admirado, atónito, pois sabia tanto como eles. Mas devia saber, pelo menos desconfiar. Mas isso digo eu agora. Quando se tinha 17 / 18 anos, naquele tempo, pensava-se mais na Brigitte Bardot, na Anne Margaret, na Ursula Andress e, vá lá, para amenizar estas bombas, também se pensava um pouco na Romy Schneider, que naquela altura ainda só fazia os filmes da Sissi, a imperatriz do império Austro-Húngaro. Só muito mais tarde ela estrelou a escaldante Piscina, ao som do “Je t’aime, moi non plus!”.
- Então pá, o que é que fizeste?
- Eu nada, Senhor Borges!
- Bom, bom, vamos lá! – e lá fomos...
Fazendo agora um flashback na narrativa, tenho que relatar uns pormenores de “alguma” relevância. Naquele radioso ano lectivo de 1962 / 1963, eu frequentava a turma B, do 6.º ano, alínea f, do Liceu Pêro de Anaia, da cidade da Beira em Moçambique. Ora se eu frequentava a turma B, quer dizer que havia uma turma A. E os nossos queridos amigos da turma A, faziam quase todos os pontos – agora chamam-se testes – uma hora lectiva antes de nós. Não se podia desperdiçar esta oportunidade! Assim meia hora depois de eles começarem os pontos, já as perguntas dos mesmos circulavam na nossa sala, trazidas por alguém que pedia para ir à casa de banho e que as ia buscar, de rastos, à janela onde se sentava o nosso querido amigo XPTO! E assim, dos pontos que eles faziam antes, lá íamos sabendo umas perguntitas ou, pelo menos, a parte da matéria que saía. E lá vivíamos felizes e contentes. Sem levantar muitas ondas para não dar nas vistas e porque fazia muito calor...
Mas, ... “Quem tudo quer, tudo perde”. Os que frequentaram a alínea f, sabem que nesse tempo havia em Ciências Naturais e em Ciências Físico-Químicas, aulas prácticas. A turma era dividida ao meio e metade tinha aulas prácticas de Ciências Naturais e a outra metade de Ciências Físico-Químicas. Na semana seguinte trocávamos. Aconteceu, para nossa tentação, que numa aula práctica de Físico-Químicas, precisamente o Senhor Borges, foi entregar à professora os pontos que íamos ter dali a dias. Aquilo, mesmo com o calor, era tentação demais, merecia um pequeno esforço. Lá se arranjou um artista que pediu uma explicação à professora, junto a uma Balança de Precisão, fez-se de desajeitado e desequilibrou aquela geringonça toda. Andavam pesinhos e peças pelo chão. Estava criada a confusão e alguém roubou um exemplar dos pontos que tinham acabado de chegar, fresquinhos...
Toda a malta soube do ponto, a solidariedade foi total. Tivemos uns dias para nos preparar e os resultados foram de arrasar. Eu, como não queria ter tudo certo, errei umas coisitas e só tive 19,4 valores! Ninguém teve negativa, ainda por cima na turma B, que geralmente tinha pior aproveitamento que a turma A. Ali havia gato! E como quis errar “umas coisitas”, para não dar muito nas vistas, fui o que tive a melhor nota entre os alunos das duas turmas.
- Então Palhares, nós já sabemos tudo! – dizia-me o director de ciclo. Só estamos à espera que confesses, pá. É melhor confessares porque o castigo é menor. Anda, diz lá como é que fizeste isto? E eu disse: - Senhor Director, só lhe vou dizer três coisas. Não fui eu quem roubou o ponto, porque embora fizesse parte desse turno de prácticas, nesse dia faltei, como pode verificar pela falta que me foi marcada no livro de ponto. Tive acesso às perguntas e como é óbvio preparei-me bem. Finalmente, sei quem roubou o ponto, mas não digo. O director – de quem tenho muitas saudades e de quem ainda sou amigo – vociferou, berrou, fez o seu papel. Até que tocou para o intervalo e ele mandou-me sair. Os meus colegas cercaram-me e sufocaram-me. Contei-lhes tudo direitinho.
Se algum mérito tive, foi o de ser o primeiro a ser chamado, e por isso ia menos avisado. Foram chamados quase quarenta. Os que estavam no turno de ciências também. Todos tivemos acesso ao ponto! Resultado? Ninguém “bufou”, ninguém para se livrar de problemas no liceu e em casa, acusou, apontou o dedo. Entretanto também desconfiaram das notas dos outros pontos, cujas perguntas íamos sabendo pelo nosso amigo XPTO, e resolveram anular todos os pontos à nossa turma, a três semanas do Natal. O castigo foi o seguinte: para os alunos que estavam na aula onde o ponto foi roubado, seis dias de suspensão. Para os que estavam nas prácticas de Ciências Naturais, três dias de suspensão. Eu só apanhei três dias porque faltei à aula. Uma semana para fazer um ponto único a cada disciplina, para servir de avaliação para as notas do primeiro período. A coisa não correu assim tão mal e as notas não foram grande desastre.
Ainda hoje tenho muita honra em fazer parte daquelas quase quatro dezenas de pessoas. Este acontecimento uniu-nos para toda a vida. Assim se forjavam os rapazes que iam ser homens, com a sabedoria dos pais e dos professores. O mérito não era só nosso, era principalmente de quem nos tinha incutido valores morais, éticos e de camaradagem. Também nos ensinaram a não roubar, claro, mas isso é outra história... Aquilo foi uma tentação do diabo! Deixo aqui a minha homenagem a todos os colegas que fizeram parte daquele 6.º B, alínea f, do ano lectivo 1962 / 1963, do Liceu Pêro de Anaia, da cidade da Beira em Moçambique.


Manuel Palhares

Odivelas, 2 de Agosto de 2005.

Não Tenho Certezas

Não tenho certezas de nada,
Sei apenas que a vida
Não é só a preto e branco,
Mas sim de todas as cores.
Nada é absoluto,
Definitivo só a morte...
Que mania de nos obrigar
A escolher entre opostos:
Branco ou preto?
Grande ou pequeno?
Lindo ou feio?
Eu ou ele?
Ela ou eu?
Tudo ou nada?
Ou isto ou o seu antónimo?
O protagonismo e a inveja,
São patéticos, são mórbidos,
E desgastam e corroem quem os tem:
Como te chamas?
De onde és, onde nasceste?
Para onde vais, o que fazes?
Onde moras, onde trabalhas?
Tens dinheiro? Quanto?
E casas? E carros? E relógios? E barcos?
De que marca, de que marca é que são?
Estou farto, porra...
Vão à merda, deixem-me em paz,
Não me chateiem!
Não gosto que me empurrem,
Não me importam essas coisas,
Não gosto de escolher!
O que eu gosto é de acordar,
Ir até à janela e cumprimentar o dia:
- Olá! Como estás?
Cheiras bem, estás lindo!
Ainda bem que ainda existes...
Porquê?

Não posso?
Estou a roubar qualquer coisa,
Ou a tirar o que é vosso?
Quando morrer...
Não quero ocupar talhão,
Ou mausoléu em cemitério.
Quero ser cremado,
Quero voltar à terra,
Quero voltar a ser pó...



Manuel Palhares

Odivelas, 2 de Agosto de 2005.

O cozinheiro Buínde

- Ó Buínde! Conta-me uma história. Anda lá, conta-me lá – suplicava eu ao cozinheiro dos meus pais enquanto ele, atarefado, jurava que não sabia mais.
- Oh! Assim não gosto mais de ti. Conta aquela da Kizumba. Conta, conta...
-“Nosso” agora não pode. Tem que fazer o jantar. O menino sai daqui, porque o patrão não vai gostar!
- O patrão não zanga nada... Se tu contares uma só, pequenina, eu depois vou brincar.
- Ai! ...este menino! Não deixa “eu” trabalhar. Pronto, está bem! Só uma mesmo, mas pequena. Depois o menino vai embora, para o Buínde fazer o jantar.
- Está bem! Está bem! Só uma, conta, conta!
- Era uma vez um menino, mesmo igual “como” o menino, que vivia lá longe, no mato.
- Depressa, conta, conta!
- Tem que ter calma. Assim, se fala, “nosso” não pode contar.
- Está bem, está bem...
- Então esse menino, que brincava lá no mato, também gostava de “história”. E foi pedir a um cocuana da aldeia dele, para contar uma história para ele.
- E depois, e depois...
- Depois esse cocuana, lá da terra, contou assim para ele:

«Quando eu não era cocuana, quando eu era novo como tu, havia aqui outro cocuana, como eu sou agora, que dizia que havia, longe daqui, uma aldeia em que havia meninos que não “tinha” nariz. Os meninos que “mentia” não “tinha” nariz. O curandeiro dessa terra conhecia uma kizumba que vinha de noite à machamba para comer os repolhos. E combinou com ela que não fazia mal ela comer o repolho se assustasse os meninos. Assim ele, como era curandeiro, fez um cuchcuch. Os meninos que “mentia”, de noite iam para a cama e começavam a dormir e começavam a sonhar. Sonhavam que vinha uma hiena que comia o nariz a eles e, mesmo a dormir, começavam a chorar maningue. A kizumba ia espreitar “no” palhota e começava a rir, a rir, a rir... Os meninos, “todos com os suores”, acordavam cheios de medo do sonho e quando viam a kizumba, começavam a gritar e a agarrar “nos” nariz para ver se “os tinha” no sítio. E assim, “desto maneira”, aqueles meninos não “mentia” mais.»

Eu, que estava sentado no chão, nesta altura, já tinha as pernas encolhidas e sobre os joelhos o queixo. Com uma mão agarrava o meu nariz. Com a outra cobria a cabeça, todo espremido junto à geleira de petróleo.
- Vá, agora vai brincar, vai. Deixa o Buínde trabalhar, deixa o Buínde fazer o jantar – dizia ele com um sorriso bondoso, onde não escondia o gozo, do medo que eu sentia...
Outras ocasiões em que o Buínde sorria, ria até, era quando a ama do meu irmão, a Rosa, uma linda manacage, passava pela porta da cozinha com o meu irmão ao colo, lentamente, devagar, toda cheia de requebros e olhando de soslaio, fingindo não o ver. Ele ficava parado, petrificado, com um sorriso aparvalhado e os olhos todos dengosos...
- Ó Buínde, o que é que tens rapaz? Estás aí parado com tanto para fazer, valha-me Deus Nosso Senhor! – dizia a minha mãe disfarçando e contendo o riso.


Manuel Palhares

Odivelas, 1 de Agosto de 2005.

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