O Primo Armando - II
Conclusão
Nós estávamos lá longe, na costa oriental de África, para onde só se podia ir com “ Carta de Chamada ” : um contracto de trabalho para o trabalhador, com viagens de ida e volta para ele e para a sua família e que garantisse, de cinco em cinco anos, seis meses de férias remuneradas em Portugal. Não era fácil ir para Moçambique!
Mas, como dizia, começava-se a criar uma consciência nova entre as camadas mais jovens, que questionavam prepotências e injustiças. Entretanto jovens advogados notabilizaram-se pela oposição que fizeram ao regime, nas acções de campanha eleitoral para as eleições para a Presidência da República a que concorreu o General Humberto Delgado em 1958. Na Beira, no Diário de Moçambique, propriedade da Diocese da Beira, na altura presidida por esse grande humanista, homem único e portanto singular, o Bispo D. Sebastião Soares de Resende, o jornalista Rui Cartaxana, denunciava o escândalo daquilo que ficou conhecido pelo caso dos “Terrenos da Munhava”. Centenas de hectares de terreno insalubre às portas da Beira, eram aproveitados pelos negros que serviam de estacaria ao colonialismo, para ali construirem os seus bairros de palhotas e latas. Ora acontece que estes terrenos eram propriedade de três grandes latifundiários de Moçambique que os tinham desaproveitados e ali logo viram uma oportunidade de os fazer render dinheiro – começaram a cobrar aos negros uma determinada importância mensal pela ocupação desses terrenos. Quem não pagasse a renda via a palhota e os haveres confiscados, com uma arrogância e prepotência imunes a qualquer autoridade que, aliás, nem se atrevia a interferir, tal era o poder que esses três colonialistas representavam em Moçambique. A única voz que se fez ouvir foi a do jornalista Rui Cartaxana. Fizeram-lhe de tal modo a vida negra, levantaram-lhe tantas acções por difamação – eu tenho esses livros todos – que o jornalista, com a esposa e os dois filhos, teve que ir viver para Lourenço Marques, onde criou a célebre revista “Tempo” e se defendeu como pôde. Na Beira nem o beneplácito do Bispo lhe valeu! Curioso de se ver, nessa altura, foram os advogados que anos antes gritavam pela democracia, liberdade, igualdade e fraternidade, nas suas acções como oposição ao regime, serem agora os advogados dos prepotentes e desumanos latifundiários beirenses. Estava-se em 1966.
Zeca Afonso, já homem, aparece por lá como professor do liceu. E é nessa altura que se criam em Lourenço Marques as tertúlias do Cine-Clube e do Café Continental. E que é que isto tudo tem a ver com o primo Armando? O primo Armando era um dos animadores culturais de toda aquela gente! Tertúlias no Cine-Clube que invariavelmente continuavam no Café Continental. Trocavam-se opiniões sobre os filmes e dali partia-se para opiniões sobre tudo: novos filmes, novos livros, novos discos, novas ideologias. Lá se juntavam no Café Continental, às sextas e principalmente aos sábados à noite, jornalistas, advogados, médicos, escritores e autodidactas, que à volta de uma chávena de café, procuravam soluções para os males do mundo. E, como moderador, o primo Armando. Todos pareciam ter por ele uma consideração enorme e ouviam-no na sua voz pausada, quente e envolvente. Nos seus olhos grandes que se arregalavam, como os de um menino, o espanto por tantas desigualdades e injustiças. Cúmplice de todos os injustiçados do mundo, irmão de todos os seus semelhantes.
Sempre no seu fato, gravata, meias e sapatos pretos. Só a camisa era branca. O seu carro, um caixote pequeno, velho, preto e ridículo que por uma razão ou por outra estava sempre a avariar, estava preso por arames e tinha que trazer como passageiro um garrafão de cinco litros de água, ou porque o radiador estava furado ou porque a água se evaporava, tal era o aquecimento. Mas recusava-se a mudar de carro. Toda a gente, principalmente a da baixa laurentina, conhecia aquele carro. Era o último da sua geração que ainda estava no activo!
Eu tive a sorte de conviver com o primo Armando, com a sua querida Aninhas e com a sua filha, durante os quatro anos que vivi em Lourenço Marques, quando para lá fui para a universidade. A ele lhe devo o gosto pela literatura, pela música de intervenção, pela poesia, pela pintura, enfim, por todas as formas de arte, pela cultura em geral. Com ele ouvi Luís Cília, Adriano Correia de Oliveira e Zeca Afonso. Apreciei Picasso e Guernica, Van Gogh e Gauguin. Com ele joguei xadrez ao som de sonatas para piano de Chopin. Ajudei-o, juntamente com a filha, a colar as legendas nos filmes do Cine-Clube aos sábados à tarde. Em filmes já muito velhos que se estavam sempre a partir e que ele com uma paciência de deus colava e recolava. Agradeço-lhe sobretudo aquelas tertúlias do Café Continental, onde eu só ouvia, encantado, todos aqueles expoentes do pensamento livre laurentino e aprendia, aprendia. De vez em quando olhavam para mim interrogadores a verem se eu os seguia ou se me aborrecia, e eu bebia aquelas palavras todas fascinado. Foi lá que fiz a minha iniciação a todas as formas em que o pensamento humano se expressa, foi lá que bebi a liberdade pela primeira vez. Fiz mais que um bacharelato, fiz uma licenciatura de quatro anos!
O primo Armando dizia-se comunista e ateu e foi o cristão mais puro e genuíno que conheci. O seus olhos ficavam marejados quando lia ou ouvia sobre o sofrimento dos outros. Queria sempre passar aos outros num altruismo sem igual, tudo o que sabia, sem protagonismo nem egoísmo. Só hoje compreendo porque quando nos dava conselhos tinha a angústia no olhar, porque sabia que não conseguia passar a mensagem que ele acreditava ser a chave para a felicidade entre os homens. No fundo o que ele nos queria dizer, ele que era ateu, foi o que o Outro, antes dele, nos tentou também ensinar e foi cruxificado por isso: “- Amai-vos uns aos outros!”. E era esta certeza de que a mensagem não passava que o agoniava. Urgia não perder tempo porque a cada segundo que passa há sempre crianças, mulheres e homens a morrer da pior das doenças: a fome!
Estávamos no dia da sua saída de Moçambique. Dali a uma hora iam para o aeroporto. Regressavam a Portugal e iam viver perto de mim, ali no Jardim da Parada em Campo de Ourique, o “Quartier Latin” lisboeta. Eu antecipava tertúlias várias e longos jogos de xadrez ao som das músicas que me ensinou a gostar. Ele apareceu à mulher, à prima Aninhas, já todo pronto. Perguntou-lhe se ela precisava de alguma ajuda e ela pediu-lhe que a ajudasse a deslizar o fecho de correr de um saco. Ele assim fez. Foi a última vez que ela o viu vivo. Faltava meia hora para irem para o aeroporto. Ele disse-lhe que ia descendo para fumar um cigarro. Daí a pouco um grito. A dona da casa onde estavam hospedados encontrou-o na garagem, enforcado, com uma corda de roupa que por ali estava. Foi assim de repente, num instante. Lá no fundo, o que o estava a matar, era ter que largar aquela terra onde só deu e nunca recebeu nada em troca. Deste modo já não saia de lá. E lá ficou! Na terra em que tinha escolhido viver vinte e oito anos antes.
Manuel Palhares
Odivelas, 25 de Setembro de 2005.
2 Comments:
Olá Manuel
Descobri hoje o seu blogue e estou a ler os fascinada.
Também eu vim de Nacala em 74, com 11 anos e conheci a Beira, em passeios por várias vezes.
Parabéns pelo blogue e pelos textos magníficos que escreve.
Três perguntas ao Manuel Palhares que assina o Blog, de que gostei:
1. Estou a "falar" com Manuel Alberto Coelho Palhares, que frequentou Medicina nos EGUM/ULM ? Se sim, devemos ter cruzado os mesmos espaços na mesma época e ter uma série de amigos comuns. Poderemos contactar de modo menos formatado ?
2. O seu Primo Armando era o Sr Armando Morais, um dos pilares do CCLM ?
3. O caso dos terrenos da Munhava: em que data aproximadamente foram publicadas as notícias no Diário de Moçambique que desencadearam o processo, a afim de procurar os detaslhes correspondentes ?
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