Beira Meu Amor

A Beira foi o grande amor da minha vida. Recebeu-me com seis anos, em Novembro de 1950 e deixei-a, com a alma em desespero e o coração a sangrar, em 5 de Agosto de 1974. Pelo meio ficaram 24 anos de felicidade. Tive a sorte de estar no lugar certo, na época certa. Fui muito feliz em Moçambique e não me lembro de um dia menos bom. Aos meus pais, irmão, outros familiares, amigos e, principalmente, ao Povo moçambicano, aqui deixo o meu muito obrigado. Manuel Palhares

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terça-feira, janeiro 31, 2006

As minhas aventuras em Pebane - VI


Episódio Nº 6 – O Lanche


A minha mãe tinha saido de manhã e eu sabia que tinha ido às lojas e cantinas da vila, às compras, e quando chegou a casa vinha com um certo ar misterioso – os filhos também se apercebem destas coisas. E só pouco antes do almoço é que me lembrei. O meu irmão fazia naquele dia cinco anos! E a minha mãe ia fazer-lhe uma pequena festa de anos.
Depois do almoço deu instruções ao criado de dentro, ao moleque, para fazer um lanche melhorado. Ela própria fez questão de ir verificar se tudo estava bem. Era um lanche de anos: jarros com água, sumo de laranja e leite com Ovomaltine. Sandes de fiambre e queijo, aos triângulos, em pão de forma sem côdea. Salgados e um bolo de chocolate com cinco velas. Espalhados pela toalha da mesa, rebuçados de várias cores. Os copos, brancos, lisos e cilíndricos, estavam enfeitados com guardanapos coloridos. Eu, ansioso, não parava de um lado para o outro da sala. De vez em quando ia espreitar à varanda. O Zambézia não havia meio de chegar. A minha mãe tinha-lhe mandado recado para aparecer por volta das quatro horas. Que mania têm os grandes de dizerem “por volta de”! Por que não dizem logo a hora certa?
Às quatro horas e dez minutos eu ouço bater à porta da frente. Corri, fui ver. Era o Zambézia! Quem desta vez olhava e mirava admirado era eu. O Zambézia tinha cortado o cabelo muito rentinho, vestia calções e camisa de caqui impecavelmente passados a ferro e calçava umas sapatilhas – agora chamam-se ténis – de cor castanha clara. Numa mão trazia um ramo de flores silvestres, muito bem arranjado, que por momentos receei que fossem para mim. Na outra, um embrulho em papel de caqui.
- Olá, boa tarde! Entra Zambézia, entra. Estava a ver que não vinhas, nunca mais chegavas.
- Eu vinha, vinha! O meu pai é que me disse que nosso não podia vir muito cedo.
- Boa tarde Zambézia, como estás? – cumprimentou a minha mãe que entretanto aparecera com o meu irmão.
- Nosso estar muito bem sinhora, muito obrigado.
- Trazes aí umas flores muito bonitas! – disse a minha mãe.
- São para a sinhora, toma! – respondeu o Zambézia, entregando o ramo de flores à minha mãe.
- Muito obrigado Zambézia. – exclamou a minha mãe. – Mas que lindas! Dá cá um beijo – e inclinou-se beijando o Zambézia. – Vou já arranjar uma jarra para as pôr ali ao pé da mesa do lanche.
- E este embrulho é para o minino Nani. Nosso saber que ele fazer hoje anos. A minha mãe, apanhada de surpresa, corou e disse ao meu irmão para aceitar e agradecer. O que ele fez.
- Mas como é que tu sabias que o Nani faz anos hoje?
- Então sinhora não sabe que nós, os preto, não precisa de correio nem telefone? Nós saber tudo muito depressa. – A minha mãe olhou-o admirada! Entretanto o meu irmão já tinha rasgado o embrulho e estava ajoelhado no chão a brincar com um lindo camião de madeira.
- Que lindo! Quem o fez Zambézia?
- Foi o meu pai! – a minha mãe, se já estava admirada, agora estava também comovida. E para disfarçar disse:
- Fica à vontade. O Manuel quer-te mostrar o quarto mas não demorem muito.
Eu lá fui com o Zambézia para o quarto e mostrei-lhe toda a tralha que tinha trazido comigo da Beira: berlindes de todas as cores, bolas, jogos da Majora, livros, “comics” – livros aos quadradinhos que agora se chamam de banda desenhada – e uns carrinhos “tipo Fórmula 1” da marca Dinky Toys. O Zambézia estava fascinado com tudo o que via. Ele vivia numa pequena vila costeira, no idos de 1955, onde pouca coisa dessa chegava e a que chegava não era para meninos como ele. O que mais o fascinou foram realmente os livros de quadradinhos do Walt Disney, pelo fascínio dos bonecos, pois ele não sabia ler e os carrinhos dinky toys que vinham nas suas caixas amarelas, com o desenho do carro na caixa.
- Anda, agora vamos e depois do lanche voltamos para aqui e podes brincar com o que quiseres. Até te dou um livro e um carrinho.
Entretanto o meu pai também chegara. Veio mais cedo. Depois de um rápido banho estava na sala a observar o meu irmão a brincar com o pequeno camião, talhado na madeira pelo canivete do pai do Zambézia. Já sabia da história do camião.
- Olha o Zambézia, o amigo do meu filho – disse o meu pai cumprimentando o Zambézia com uma festa na cabeça. – O teu pai tem muito jeito e pelo que sei tu também!
Ao lanche o Zambézia portou-se com muita cerimónia, a ponto de a minha mãe o ter que incentivar e distrair para ele beber e comer mais. Perguntou-lhe pela mãe e pelos irmãos, que viviam numa aldeia tradicional, perto de Maganja da Costa, que ainda era um pouco longe e os quais o Zambézia visitava quinzenalmente com o pai, aos fins-de-semana, apanhando boleia nos camiões que vinham abastecer as cantinas. Ele era o mais velho de quatro irmãos: dois rapazes e duas raparigas. Viera com o pai para Pebane, para estudar na missão dos padres, mas já chegara com o ano lectivo adiantado e os padres da missão acharam por bem ele recomeçar os estudos no início do próximo ano lectivo, em Setembro. Assim, ia-se ambientando à vila, aos seus usos e costumes. Deste modo distraido, o Zambézia lá foi comendo mais um pouco, sem nunca perder a sua postura de menino, a quem o pai dera instruções sobre como se comportar. A minha mãe insistiu muito com ele para que não deixasse de estudar e tirasse a 4ª classe, que era o que por ali havia e o que ele devia fazer. Depois... bem, depois, o meu irmão que apanhou todos a conversar, já tinha furado o bolo com todos os dedos e estava pintado de chocolate! Todos se riram! Acenderam-se as velas e cantámos os “Parabéns a Você!”. O meu irmão também teve uma prenda dos meus pais. Era um pequeno farol a pilhas, o qual rodando um plástico circular, dava luz branca, vermelha e verde. Pegou nele, olhou-o por todos os lados, pousou-o em cima da mesa e foi brincar para o chão com a camioneta que o Zambézia lhe oferecera, já mais ou menos limpo do chocolate. O Zambézia também teve uma prenda. A minha mãe tinha-lhe conseguido comprar um daqueles canivetes, “tipo suiço”, que o deslumbrou com aqueles anexos todos. Eu também tive uma lembrança qualquer. Mas, à noite, quando fui para a cama, era com o farol do meu irmão que brincava no quarto às escuras. Que efeitos aquilo fazia nas paredes! E os cães vendo aquilo, gemiam e rosnavam. Estava a acabar o dia 31 de Julho!
Eu tenho mais histórias com o Zambézia para contar, mas por agora, penso que devo fazer uma pausa.


Manuel Palhares

Odivelas, 21 de Setembro de 2005.

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Ai,
ke saudades desses lanches antigos do antigamente! sem as modernices e esquisitiçes de hoje onde todos vao lanchar"fora" e cada convidado paga o seu!
E a simplicidade do tratamento ao Zambézia! Até os meus olhos "suaram"!
Gostei

domingo, fevereiro 12, 2006 8:30:00 da tarde  
Blogger Manuel Palhares said...

É verdade Sãozita,

Como era tudo menos complicado, mais verdadeiro e portanto muito mais feliz.
Também eu ao escrever tudo isto senti, por vezes, suores nos olhos.
Obrigado pelo comentário e um beijinho do amigo,

Manel

domingo, fevereiro 12, 2006 11:51:00 da tarde  

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