Beira Meu Amor

A Beira foi o grande amor da minha vida. Recebeu-me com seis anos, em Novembro de 1950 e deixei-a, com a alma em desespero e o coração a sangrar, em 5 de Agosto de 1974. Pelo meio ficaram 24 anos de felicidade. Tive a sorte de estar no lugar certo, na época certa. Fui muito feliz em Moçambique e não me lembro de um dia menos bom. Aos meus pais, irmão, outros familiares, amigos e, principalmente, ao Povo moçambicano, aqui deixo o meu muito obrigado. Manuel Palhares

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segunda-feira, janeiro 30, 2006

Carta Aberta ao Povo Moçambicano


Divagando em roda livre, sem olhar para écran, vou solto e acelerado, atrás do meu pensamento. E por mais esforços que eu faça, nunca o consigo apanhar! Vai mais à frente, para minha desgraça, e não me deixa, nem permite que o emende, que o corrija para o social e politicamente correcto. Com ele não há censuras nem hipocrisias: ele é que puro e concreto! A única coisa que me permite é que o ouça a pensar, e já é um previlégio que me deixe ouvi-lo divagar.
Sendo assim, que ouço eu, quando o meu pensamento se põe a cogitar? Voçês nem queiram saber o que para ali vai! Não consigo reter tudo, apenas uma parte pequena e portanto aqui fica o que consigo apanhar, quando febrilmente o escuto.
Sabem no que está agora ele a pensar? É obvio que não! Mas eu vou contar.
Neste preciso momento está a pensar em nós que andamos por estes sites de Moçambique com saudades. Pensa que temos pena de ter deixado aquele paraíso que pensávamos que era nosso e aquele modo de vida mais ou menos desafogada e tão despreocupada. Lá viveram sem preocupações os bisavós, os avós, os pais e nós. Aquilo era realmente bom e quase nada nos faltava! Mas com o que se admira o meu pensamento é que em mais de quarenta sites, ninguém se interroga porque era assim! Ninguém neles se interroga quem eram os alicerces dessa sociedade que foi vivida por nós. Como é possível que em tantos milhares de mensagens, em tantas fotografias, quase não haver uma pequena referência aos pilares da nossa felicidade? De que eram eles feitos, de betão e de ferro? Não, eram de carne e de osso, mesmo iguaizinhos a nós! É verdade! Acreditem! Tinham braços tinham pernas e cabeça para pensar. Era a eles que eu gostava que elevássemos a nossa voz. Àqueles que desbravavam matos, construindo as picadas, às ordens do chefe do posto; construindo estradas e pontes e caminhos de ferro também, às ordens dos engenheiros. E construiram as cidades para nós podermos viver. Não se esqueçam meus amigos que não sou eu que vos fala, apenas aqui reproduzo o que vai no meu pensamento, o que consigo apanhar, porque, como sabem, ele é mais rápido que o vento.
Mas voltando ao povo anónimo, ao negro moçambicano, ainda consigo ouvir o meu pensamento dizer algumas coisas mais. Diz ele que era esse povo que pescava e cultivava os campos, às ordens do mestre do barco, às ordens do machambeiro. Pescava e cultivava produtos que não tinha dinheiro para poder comprar! Limpava as ruas das cidades, as casas, as escolas, os hospitais e outras coisas mais… Locais onde não vivia, nem usava! Cozinhava para nós, sevia-nos à mesa e lavava a nossa roupa. Servia-nos em cafés e também nos restaurantes e em casa só comia peixe e miolo de camarão seco com farinha de milho, quando comia. O meu pensamento está agora a pensar se vocês já tinham pensado nisto?! Mas como é muito rápido, já vai longe e eu a correr para o poder ouvir. Ele agora está a pensar em colos maravilhosos, fofos, doces, cheirosos e macios que nos embalavam para nos adormecer, onde descansávamos, onde dormíamos, onde comíamos, onde chorávamos quando estávamos doentes: eram os corpos das “macaaias” que tomavam conta de nós. E mesmo naquela desporporção entre salários médios: entre os seis mil escudos do colono e assimilado (30 euros) e os trezentos ou quatrocentos escudos do negro trabalhador (1,5 / 2 euros), isto nas principais cidades, porque lá para o mato era pior – aquela gente era amável, até gostava de nós! É verdade, por muito que pareça incrível! É assim o meu pensamento, como não respira, não pára para o fazer, mas eu que sou um pobre humano estou sem fôlego para o seguir... Lá está ele, já o estou a ouvir! Nem todos os colonos viviam bem, sem dificuldades. É verdade! Alguns até passavam mal. É verdade! Mas na percentagem fria dos números, nisso de passar mal, a desporporção era enorme! Era de um para vinte! E todos sabem isso, mesmo que o queiram esquecer. E é isto que me admira quando vejo tanta vontade em recordar o passado e em lá ir visitar essa terra de Deus, esse Éden do Índico! Mas quanto ao falar no seu povo e até fotografá-lo, tão pouco ou quase nada! Porquê? Porquê? Porquê? Esse povo tão amável que até chorou por nós. Não era só o “madala”, com a sabedoria no cã, mas mesmo o mais novo, que diziam e até temiam a partida dos colonos!? Porquê? Porquê? E alguns de nós lhes dizíamos que para eles ia ser bom! Iam ser independentes, tomar conta do seu destino, iam ter essa palavra que enche ouvidos a muitos povos, mas que não mata a fome, nem enche barriga – iam ser livres, iam ter a liberdade! E alguns, aqueles que nos sentiam amigos, lá nos iam sussurando: - Agora como vai ser? O branco vai embora e a gente como fica? Vem aí o “mabandido” que quer o engajamento e nosso tem medo! Nosso tem mulher e filhos... Vai ficar sem emprego! Como vai ser? Como vai ser? – diziam esfregando a cara de mão espalmada, com os cinco dedos abertos, alguns deixando correr lágrimas por aquela face curtida pela vida sofrida.
E para lá ficaram e lá estão. Alguns até se escrevem connosco durante todo este tempo. Quantos pediram até para os trazermos para cá...!?
E lá estão entregues à má sorte desta vida desigual. Para uns tudo, para outros nada!
E nesse paraíso criado por Deus, entregue a “elites” e sempre, sempre, com o apoio das forças armadas, elas, as “elites” e também as forças armadas, cometem crimes de bradar aos céus – a corrupção é impensável de imaginar, até para mim que sou o pensamento de quem vos escreve! E o povo anónimo, aquele que nos amaciou a existência, continua sem nada, sem nada, nada, nada,...Bem, esse povo do Moçambique real e profundo, tem secas, tem fome, tem miséria, tem doenças e tem acima de tudo a prepotência e cobardia das fardas, os desmandos do poder! Penso, e julgo não me enganar, que também muitos de vós pensam assim! Mas é preciso gritar é preciso dizê-lo! Que nesta aldeia global a mensagem é apanhada mais depressa do que se pensa! E.. “Água mole em pedra dura, tanto dá até que fura!” .
Há dias atrás, andou para aqui editado, um texto do Mia Couto, que serve de uma espécie de guru, para alguns que tanto o admiram – ah! o politicamente correcto é por vezes tão falso e hipócrita, mas dá tanto jeito para as nossas pequenas vidinhas – mas, dizia o meu pensamento, nesse texto Mia Couto contava, como se sentiu embaraçado quando um amigo estrangeiro, que estava de visita a Moçambique, lhe perguntou se era seguro ir dar um passeio a pé ou de carro pelos arredores do hotel e pelas partes nobres da cidade, supostamente mais seguras. E ele gaguejou, gaguejou, envergonhado, sem saber o que responder, até que o tal amigo estrangeiro, ao perceber o seu embaraço, o tirou daquela angústia, dizendo: - Pensando melhor vou ficar aqui mesmo pelo hotel! Foi simpático o senhor, não foi? E Mia Couto confessa, que até ele teve também vontade de se mudar para o hotel! Isto passou-se agora, há dias, em MAPUTO, onde se rouba de mão armada e violam-se pessoas na marginal, em plena luz do dia! – é ele, o Mia Couto, que o diz!
Ai este meu pensamento, o que ele lê o que ele ouve!
Bem! Estou cansado de correr atrás do meu pensamento. Parei, deixei-o seguir. Ele, como é tão rápido, tão veloz, não tarda em voltar atrás, para me atormentar com aquilo que o ouço pensar. Mas que hei-de eu fazer? Não posso libertar-me dele...


Manuel Palhares

Odivelas, 4 de Setembro de 2005.


* Imagem representando a Magna Carta, retirada de: http://www.archives.gov/exhibits/featured_documents/magna_carta/ .

5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Só uma palavra.

PARABÉNS!

Mereces os parabéns meu bom e ilustre amigo.

Jorge Russell

quarta-feira, fevereiro 08, 2006 10:46:00 da tarde  
Blogger Manuel Palhares said...

Meu caro amigo Jorge Russel,

Muito obrigado pelas tuas muito amáveis palavras.

Um grande abraço,

Manuel Palhares

quinta-feira, fevereiro 09, 2006 12:03:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

caro amigo Manual Palhares:
Pode ajudar-me?
estava a fazer uma pesquisa no google para a palavra "madala" e vim parar ao seu blog :)

poderia-me esclarecer quanto ao significado desta palavra?

o meu e-mail é o seguinte: leanan_sidhe1@sapo.pt

muitíssimo obrigada.

atenciosamente,

Antígona

segunda-feira, junho 05, 2006 7:22:00 da tarde  
Blogger Manuel Palhares said...

Antígona,

Conforme me pede vou enviar-lhe para o seu e-mail as informações que conseguir.
Um abraço,

Manuel Palhares

terça-feira, junho 06, 2006 8:09:00 da tarde  
Blogger Olinda said...

Fiquei emocionada com o seu texto dedicado ao povo moçambicano, lindo.
Obrigada pelas palavras que eu sinto mas ainda não consegui escrever.

sábado, maio 22, 2010 8:27:00 da tarde  

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