Histórias do meu Liceu
Andávamos nós muito satisfeitos, o que não era difícil naqueles tempos, quando rebentou a bronca.
- Dá-me licensa Senhora Doutora?
- Faça favor Senhor Borges, passa-se alguma coisa?
E o chefe do pessoal menor do Liceu, imaculado na sua farda branca, avançou em direcção à secretária da professora e segredou-lhe qualquer coisa ao ouvido.
- O aluno Manuel Palhares acompanhe o Senhor Borges à Direcção do 3º Ciclo – disse a professora. Todos olharam para mim. “O que foi? O que foi? O que é que fizeste? – perguntavam-me os colegas.” E eu encolhia os ombros, admirado, atónito, pois sabia tanto como eles. Mas devia saber, pelo menos desconfiar. Mas isso digo eu agora. Quando se tinha 17 / 18 anos, naquele tempo, pensava-se mais na Brigitte Bardot, na Anne Margaret, na Ursula Andress e, vá lá, para amenizar estas bombas, também se pensava um pouco na Romy Schneider, que naquela altura ainda só fazia os filmes da Sissi, a imperatriz do império Austro-Húngaro. Só muito mais tarde ela estrelou a escaldante Piscina, ao som do “Je t’aime, moi non plus!”.
- Então pá, o que é que fizeste?
- Eu nada, Senhor Borges!
- Bom, bom, vamos lá! – e lá fomos...
Fazendo agora um flashback na narrativa, tenho que relatar uns pormenores de “alguma” relevância. Naquele radioso ano lectivo de 1962 / 1963, eu frequentava a turma B, do 6.º ano, alínea f, do Liceu Pêro de Anaia, da cidade da Beira em Moçambique. Ora se eu frequentava a turma B, quer dizer que havia uma turma A. E os nossos queridos amigos da turma A, faziam quase todos os pontos – agora chamam-se testes – uma hora lectiva antes de nós. Não se podia desperdiçar esta oportunidade! Assim meia hora depois de eles começarem os pontos, já as perguntas dos mesmos circulavam na nossa sala, trazidas por alguém que pedia para ir à casa de banho e que as ia buscar, de rastos, à janela onde se sentava o nosso querido amigo XPTO! E assim, dos pontos que eles faziam antes, lá íamos sabendo umas perguntitas ou, pelo menos, a parte da matéria que saía. E lá vivíamos felizes e contentes. Sem levantar muitas ondas para não dar nas vistas e porque fazia muito calor...
Mas, ... “Quem tudo quer, tudo perde”. Os que frequentaram a alínea f, sabem que nesse tempo havia em Ciências Naturais e em Ciências Físico-Químicas, aulas prácticas. A turma era dividida ao meio e metade tinha aulas prácticas de Ciências Naturais e a outra metade de Ciências Físico-Químicas. Na semana seguinte trocávamos. Aconteceu, para nossa tentação, que numa aula práctica de Físico-Químicas, precisamente o Senhor Borges, foi entregar à professora os pontos que íamos ter dali a dias. Aquilo, mesmo com o calor, era tentação demais, merecia um pequeno esforço. Lá se arranjou um artista que pediu uma explicação à professora, junto a uma Balança de Precisão, fez-se de desajeitado e desequilibrou aquela geringonça toda. Andavam pesinhos e peças pelo chão. Estava criada a confusão e alguém roubou um exemplar dos pontos que tinham acabado de chegar, fresquinhos...
Toda a malta soube do ponto, a solidariedade foi total. Tivemos uns dias para nos preparar e os resultados foram de arrasar. Eu, como não queria ter tudo certo, errei umas coisitas e só tive 19,4 valores! Ninguém teve negativa, ainda por cima na turma B, que geralmente tinha pior aproveitamento que a turma A. Ali havia gato! E como quis errar “umas coisitas”, para não dar muito nas vistas, fui o que tive a melhor nota entre os alunos das duas turmas.
- Então Palhares, nós já sabemos tudo! – dizia-me o director de ciclo. Só estamos à espera que confesses, pá. É melhor confessares porque o castigo é menor. Anda, diz lá como é que fizeste isto? E eu disse: - Senhor Director, só lhe vou dizer três coisas. Não fui eu quem roubou o ponto, porque embora fizesse parte desse turno de prácticas, nesse dia faltei, como pode verificar pela falta que me foi marcada no livro de ponto. Tive acesso às perguntas e como é óbvio preparei-me bem. Finalmente, sei quem roubou o ponto, mas não digo. O director – de quem tenho muitas saudades e de quem ainda sou amigo – vociferou, berrou, fez o seu papel. Até que tocou para o intervalo e ele mandou-me sair. Os meus colegas cercaram-me e sufocaram-me. Contei-lhes tudo direitinho.
Se algum mérito tive, foi o de ser o primeiro a ser chamado, e por isso ia menos avisado. Foram chamados quase quarenta. Os que estavam no turno de ciências também. Todos tivemos acesso ao ponto! Resultado? Ninguém “bufou”, ninguém para se livrar de problemas no liceu e em casa, acusou, apontou o dedo. Entretanto também desconfiaram das notas dos outros pontos, cujas perguntas íamos sabendo pelo nosso amigo XPTO, e resolveram anular todos os pontos à nossa turma, a três semanas do Natal. O castigo foi o seguinte: para os alunos que estavam na aula onde o ponto foi roubado, seis dias de suspensão. Para os que estavam nas prácticas de Ciências Naturais, três dias de suspensão. Eu só apanhei três dias porque faltei à aula. Uma semana para fazer um ponto único a cada disciplina, para servir de avaliação para as notas do primeiro período. A coisa não correu assim tão mal e as notas não foram grande desastre.
Ainda hoje tenho muita honra em fazer parte daquelas quase quatro dezenas de pessoas. Este acontecimento uniu-nos para toda a vida. Assim se forjavam os rapazes que iam ser homens, com a sabedoria dos pais e dos professores. O mérito não era só nosso, era principalmente de quem nos tinha incutido valores morais, éticos e de camaradagem. Também nos ensinaram a não roubar, claro, mas isso é outra história... Aquilo foi uma tentação do diabo! Deixo aqui a minha homenagem a todos os colegas que fizeram parte daquele 6.º B, alínea f, do ano lectivo 1962 / 1963, do Liceu Pêro de Anaia, da cidade da Beira em Moçambique.
Manuel Palhares
Odivelas, 2 de Agosto de 2005.
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home