Os pais não estavam, porque o pai tinha ido em serviço a Nampula e levara a esposa com ele. Foi tomar um chuveiro e, ao sair do banho, ainda de toalha à cintura, foi até à sala e colocou no gira-discos o último "long play" dos Beatles que tinha comprado nessa mesma tarde, na casa de artigos musicais situada ao lado da Companhia das Águas da Beira, ali mesmo ao pé do Café Scala. Cantarolando, ao desafio com os rapazes de Liverpool, foi-se vestir, sentindo-se satisfeito com a vida.
Pouco depois foi ter com um amigo que vivia na messe dos oficias da Força Aérea, no Prédio Empório, para irem os dois, no carro desse amigo, até ao Macúti, ter com duas lindas irmãs, com quem namoravam. A ida até ao Macúti e o tempo que lá passaram foi, como sempre, muito agradável!
De regresso a casa, preparou um whisky com água gaseificada e umas pedras de gelo e, bebericando a bebida, foi até à varanda da sala, que dava para o rio, apreciar aquela bela paisagem que era ver as luzes dos navios fundeados no estuário do rio Pungue, à espera de vez para atracarem no porto da Beira, ou descarregando ali mesmo, para grandes batelões, as mercadorias vindas da Índia, de Macau, ou de Portugal. Jantou com o irmão a refeição que o Benjamim, o empregado dos pais, lhes tinha preparado, disse ao irmão para não se deitar tarde porque no dia seguinte tinha aulas e saiu.
Ao chegar cá abaixo, à rua, verificou que se estava a levantar uma ligeira cacimba, mas inspirou com agrado o ar da noite e virou em direcção ao Largo Dr. Araújo Lacerda, onde se encontrava o edifício do BNU. Aí, hesitou entre ir pela rua do Cinema Olímpia, ou antes pelo Largo Luís de Camões e passar pelo Cinema Palácio, o qual se situava nas trazeiras do Olímpia, de frente para o referido largo. Optou pela segunda hipótese e, quando lá chegou, entrou no Restaurante Moçambicano, dirigiu-se ao balcão e pediu um café. Tomado o café, atravessou para o lado do Cinema Palácio e deitou um olhar para as montras da casa de mobílias que havia no rés-do-chão do edifício onde funcionava o cinema. O Cinema Palácio funcionava num primeiro e segundo andares, pois também tinha balcão e uma espécie de camarotes laterais. Era uma linda e original sala de espectáculos! Deixadas para trás as referidas montras, atravessou a rua em diagonal e caminhou em direcção ao Cinema Nacional. Quando lá chegou, comprou o bilhete para a sessão da noite e, antes de entrar, deitou uma olhadela para o outro lado da rua e viu, através dos vidros das janelas do Restaurante Piquenique, o seu amigo João ajudando o pai.
Acabada a sessão de cinema, por volta das onze da noite, atravessou a rua e caminhou em direcção às traseiras do Tribunal, passou junto às instalações da Manica Trading - situadas no lindo Edifício Infante - e atravessou a Ponte Metálica. Chegado ao Largo do Caminho de Ferro, mais uma vez se admirou com o lindo e feérico edifício da Estacão, obra conjunta de três distintos arquitectos, a quem a Beira ficou a dever vários dos seus mais lindos prédios. Tinha orientado os seus passos para ali, pois o seu objectivo era ir tomar uma cerveja Manica ao bar que funcionava no piso térreo do Moulin Rouge: babel de todas as línguas, local de todos os cios, sítio de ébrias lutas.
Olhou para o relógio, era quase meia noite e era hora de regressar a casa. Foi, junto ao Chiveve, pelo grande passeio que acompanhava a sua margem esquerda, desde a ponte metálica até ao Largo Caldas Xavier.
Chegado a casa, deparou com o rádio a tocar e o irmão a dormir no sofá. Amparou-o até à cama e deitou-o. Depois, ainda foi até a varanda fumar um cigarro e imaginou-se a partir num dos muitos navios que dali via fundeados, para parte incerta, à aventura, mas sabendo que sempre regressaria à sua Beira.
Odivelas, 16 de Junho de 2007.
Manuel Palhares