Beira Meu Amor

A Beira foi o grande amor da minha vida. Recebeu-me com seis anos, em Novembro de 1950 e deixei-a, com a alma em desespero e o coração a sangrar, em 5 de Agosto de 1974. Pelo meio ficaram 24 anos de felicidade. Tive a sorte de estar no lugar certo, na época certa. Fui muito feliz em Moçambique e não me lembro de um dia menos bom. Aos meus pais, irmão, outros familiares, amigos e, principalmente, ao Povo moçambicano, aqui deixo o meu muito obrigado. Manuel Palhares

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sexta-feira, fevereiro 03, 2006

O Reitor


A Beira até a 1956 não tinha ensino público para além da 4ª classe. A partir da instrução primária aqueles que queriam continuar a estudar tinham que optar pelo ensino particular.
Só no ano lectivo de 1956 / 1957 é que abriu na Beira o primeiro liceu oficial. Por política determinada pelo governo de Lisboa, tinha que abrir naquele ano e, sem tempo para construir instalações próprias, optou-se por alugar as instalações que a directora do Colégio Luís de Camões tinha mandado construir, para aí instalar os vários graus de ensino do seu colégio que andavam espalhados por diferentes instalações do bairro da Ponta Gea. Ficavam estas instalações na esquina da rua Sancho Toar com uma rua que ia dar ao Jardim do Bacalhau e da qual já não me lembro o nome. Mas um liceu não se faz só de instalações mesmo que fossem novas e a estrear. Era preciso equipá-lo com toda a espécie de material – desde o mobiliário até ao material didático – e eram precisas pessoas que tratassem de levar a cabo essas tarefas. Os jornais da Beira anunciaram, naquela época, que nesse ano lectivo ia abrir na cidade da Beira o primeiro liceu oficial, com o nome de Liceu Pêro de Anaia e que para o efeito o governo da colónia tinha destacado diversos professores: uns vindo de Lourenço Marques outros de Portugal.
A pessoa nomeada para seu primeiro reitor e para chefiar a comissão instaladora, foi o até então secretário do Liceu Salazar de Lourenço Marques, o Dr. Armindo de Brito. Deste modo ele e mais um grupo de professores chegaram à Beira e instalaram-se no Hotel Central até alugarem casa.
Lembro-me que as aulas começaram mais tarde do que era costume porque as coisas não estavam prontas no princípio de Setembro como seria de esperar. Mas, embora atrasado, o ano lectivo começou com tudo a correr bem e eu tive o privilégio de fazer parte dos primeiros beirenses a frequentarem o ensino liceal oficial.
O Dr. Armindo de Brito, o Reitor, era uma pessoa com personalidade forte, por volta dos quarenta anos, que impunha respeito pela sua postura um tanto ou quanto grave e distante, mas que ao mesmo tempo cativava os alunos pelo seu modo de ser e de ensinar. Era licenciado em Ciências Matemáticas e foi meu professor no primeiro e segundo anos do liceu. Ensinava de um modo lúdico mas sem perder a seriedade e com ele a matemática era fácil de aprender, o que fazia dele um óptimo professor. Nas aulas e fora delas, no recinto do liceu, ele era o chefe e ninguém tinha dúvidas sobre isso.
Quando tínhamos a entrega de um ponto (teste) era uma tortura para nós, miúdos de 11 e 12 anos, irmos lá à frente ao estrado sobre o qual ele estava, receber o nosso ponto. E isto porquê? Porque ele exigia de nós a noção daquilo que tínhamos feito no ponto e obrigava-nos a dizer qual era a nota que estávamos à espera de ter. Eu disse, em epígrafe, que era uma tortura ir receber o ponto quando era a nossa vez, porque quando era a vez dos outros era uma risota.
- Senhor Palhares, que nota é que pensa que teve no seu exercício escrito? – perguntava ele com o nosso ponto na sua mão meia esticada que ia recolhendo à medida que nós esticávamos a nossa, para dessa maneira nos obrigar a chegar bem perto dele.
- Então, não temos o dia todo. Estou à espera que me diga, a mim e aos seus colegas, a nota que pensa que teve. – Ao princípio, inconsciente, pensando que aquilo era brincadeira, lá respondia olhando-o meio de lado, para também lançar um olhar divertido para os colegas:
- Treze ou catorze valores – exclamava eu sorridente. Ainda não tinha fechado o sorriso e já uma estalada tinha soado na minha cara, ou um cachaço no meu pescoço.
- Apanhou para a próxima vez aprender a ter consciência daquilo que faz nos exercícios escritos. Tome lá seu cretino, teve 10,5 valores.
- Senhor Palha de Sousa, que nota é que pensa que teve? – e o Elias António que era muito bom aluno, pensando que usando a humildade se safava, respondia:
- Doze valores! – nova estalada ou cachaço.
- Idiota! Copiou ou é idiota? Leve daqui o seu ponto. Teve 16 valores.
- Senhor Roca. Vamos! Que nota, que nota?
- Treze valores.
- Acertou. Pegue o seu exercício.
Isto era aterrador para quem ia ao estrado receber o ponto, mas divertia os outros trinta e tal alunos que assistiam às cenas que o colega fazia para tentar escapar à bofetada ou ao cachaço. Era uma risota que ele permitia.
Quando alguém se portava mal e os outros professores ou contínuos se queixavam de alguma falta de respeito ou asneira, o Dr. Armindo de Brito, se o assunto não fosse muito grave, não perdia tempo com burocracias de averiguações, conselhos disciplinares e dias de suspensão. Nada disso. Demoravam tempo, davam trabalho e por vezes não resolviam o problema de um modo eficaz. Chamava o aluno ao seu gabinete e perguntava:
- O que é que o senhor prefere? Uma suspensão ou um par de estalos? – se o aluno balbuciava “Um par de estalos”, nem tinha tempo de acabar a frase porque já estava com eles, seguidos de uma reprimenda com o aviso que aquela era a primeira e a última vez que tínhamos o seu “perdão”. Era assim o nosso reitor, o Dr. Armindo de Brito e deste modo tudo corria sem sobressaltos.
Sobressaltos houve quando num sábado à tarde, na altura das eleições para a Presidência da República a que concorreu o General Humberto Delgado, um grupo de alunos mais velhos do liceu, vestidos com a farda da Mocidade Portuguesa, atiraram com o cinto da farda que tinha um S, ao Rio Chiveve. Era suposto esse S querer significar serviço, mas toda a gente dizia que era um S de Salazar.
As autoridades civis e policiais precionaram o Reitor para que levantasse um inquérito no liceu, a fim de apurar quem tinham sido os alunos que participaram nesses desacatos e os castigasse severamente. O Dr. Armindo de Brito recusou-se a levar a cabo qualquer acção no sentido de realizar tal inquérito, alegando que tais acontecimentos tinham ocorrido fora das instalações do liceu e por isso não tinham nada a ver com o estabelecimento de ensino.
O Dr. Armindo de Brito foi demitido de reitor e mandado regressar a Lourenço Marques. Todos os alunos se quotizaram com o fim de angariarmos dinheiro para oferecermos ao nosso Reitor uma caneta. Metade da Beira se apresentou no aeroporto no dia da sua partida, altura em que um aluno mais velho, em nome de todos nós, lhe fez a oferta da caneta debaixo de estrondosos aplausos de alunos e pais.
Uns anos mais tarde, o Dr. Armindo de Brito que entretanto abandonara o ensino, regressou à Beira para ocupar o cargo de director de uma companhia de seguros. Depois da independência de Moçambique o Dr. Armindo de Brito foi nomeado Director dos Caminhos de Ferro da Beira. Foi com homens assim que tive a sorte de conviver. Já adulto quando me cruzava com ele na rua ou o encontrava em casa do meu amigo Zé Tó e o cumprimentava, tinha um prazer enorme em ouvi-lo dizer, naquela sua voz grave e com um esboço de sorriso:
- Olá senhor Palhares. Dê os meus cumprimentos ao seu pai.


Manuel Palhares

Odivelas, 5 de Novembro de 2005.

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