O contador de histórias
Um homem velho, já desdentado e de barbas até ao peito, mas com aspecto asseado, embora de vestuário coçado, tocou à campaínha da nossa casa, numa tarde cinzenta e fria de fim de Outono do ano passado. Fui eu que lhe abri a porta.
- Boa tarde! O que é que o senhor deseja? – perguntei-lhe eu.
- Boa tarde, menina. Eu desejava falar com a dona da casa se fosse possível.
- E sobre que assunto?
- Diga-lhe que tenho uma coisa preciosa para lhe vender.
- O senhor desculpe. A dona da casa é a minha mãe e não me parece que, presentemente, ela possa estar interessada em comprar seja o que for. Posso porém dizer-lhe que o senhor está aqui e tenho a certeza que ela lhe dará alguma coisa.
- Por amor de Deus menina, não me ofenda. Eu não estou a pedir esmola às portas. Já lhe disse que tenho uma coisa para vender e gostaria de falar com a sua mãezinha para lhe perguntar se estava interessada em comprar.
- Quem é que está aí Carolina? – ouviu-se uma voz perguntar.
- É um senhor que diz que tem uma coisa para te vender, mamã. – A minha mãe apareceu por trás de mim. Ainda é uma mulher com aspecto jovem, embora já tenha passado os cinquenta anos.
- Boa tarde! Desculpe,mas não estou interessada em comprar nada. E aliás, onde é que o senhor transporta a mercadoria que vende? Nem sequer com uma pequena mala o vejo. – O homem velho sorriu e disse:
- Eu não preciso de nenhuma mala para transportar aquilo que vendo, minha senhora, porque o que vendo transporto aqui. – respondeu ele tocando na testa com o dedo indicador.
- Agora é que não estou a perceber! E não gosto de estar muito tempo aqui com a porta aberta. Eu vou lá dentro ver o que tenho no porta-moedas e alguma coisa lhe darei.
- A senhora desculpe, mas eu já disse a esta linda menina que não andava a pedir esmola e à senhora digo-lhe o mesmo. O que eu ando a vender são sonhos! – exclamou o velho de olhos brilhantes e com um sorriso desdentado. E houve qualquer coisa no brilho daqueles olhos que fez com que a minha mãe hesitasse e, contra tudo o que seria aconselhável,dei por ela a convidá-lo a entrar para o hall de nossa casa e a fechar a porta da rua.
- Diga-me então que sonhos são esses que diz ter para vender que eu hoje não posso perder muito tempo - pediu-lhe a minha mãe já mostrando sinais de impaciência.
- A senhora não se zangue, mas neste mundo em que os miúdos passam o tempo todo em frente a um monitor de computador, eu, que estou velho e desempregado, pensei ganhar a minha vida vendendo sonhos. Isto é, passo pelas casas onde sei que há crianças e, com a autorização dos pais, conto-lhes histórias que depois as fazem sonhar. Falo-lhes de um tempo que já lá vai e de coisas que já não há nas cidades, nem nas vilas e até nas aldeias, porque estas, as aldeias, também já não têm quase ninguém, algumas estão mesmo desertas. Então conto-lhes como era a vida no tempo em que eu era novo. No tempo em que havia galinhas, patos, coelhos e perus, vivos, nos mercados e nas feiras, para serem vendidos. E quando descrevo, aqui na cidade, estes animais a crianças pequenas, algumas até já com a 4ª classe feita, ficam admiradas. Olham para mim entre o desconfiado e o curioso e algumas pedem-me para eu desenhar esses animais: vão a correr buscar folhas de papel e esses substitutos dos lápis de cor que são as canetas de feltro. Depois conto-lhes como se fazia tudo artesanalmente e como era a vida nas aldeias e no campo. Ficam incrédulas quando lhes falo e descrevo as charruas, os arados, as alfaias agrícolas e os sistemas de rega. Quando menciono as juntas de bois, o burro na nora e outras alimárias. Vejo-lhes os olhos fascinados quando lhes conto que na aldeia assistíamos aos partos de quase todos os animais. Conto-lhes que ninguém fechava a porta de casa à chave e como todos se conheciam, cumprimentavam e ajudavam uns aos outros em tudo. Como numa semana todo o povo se reunia para ajudar nas obras da casa do Ti Manel e na semana seguinte se voltava a reunir para ajudar nas obras do estábulo do Ti Quim. Falo-lhes em jogos e brinquedos que não conhecem: o aro de bicicleta que se conduzia com a ajuda de um pau, os berlindes, os piões, as corridas de caricas como se fossem grandes corridas de automóveis, das fisgas, do tic-tac, das armadilhas para apanhar pássaros,das cordas para as meninas bricarem, das bonecas de cartão que se despiam e vestiam, do saltar ao eixo, das escondidas, da cabra-cega e por aí... Descrevo-lhes os arraiais por ocasião das romarias e as feiras onde se vendia de tudo, desde o gado e criação doméstica, a produtos hortícolas e frutas, queijos, vinhos e peças de tecido para se fazer a roupa e utensílios domésticos. Se petiscavam comidas saborosas e se olhava para as raparigas que andavam sempre juntas e a rirem como bandos de passarinhos. Conto-lhes como eram as desfolhadas,
as vindimas, o pisar da uva e explico-lhes o que é o vinho novo que se prova no dia de S. Martinho - a água-pé – acompanhado de castanhas assadas ou cozidas. Se quem me ouve já é adolescente, decrevo como eram os bailaricos e os namoros naquela época. Como os rapazes tinham que pedir autorização
aos pais, às mães, às tias e às avós, para convidarem uma rapariga para dançar. E eles, os meus ouvintes ficam muito admirados. Principalmente quando lhes digo como é que os jovens dançavam naquela altura: os rapazes enlaçavam as raparigas pela cintura com a mão direita e levantavam a esquerda para segurarem a mão direita das raparigas. Por sua vez as raparigas pousavam a sua mão esquerda no ombro do rapaz e assim controlavam o excesso de aproximação deste, empurrando-o se ele, o rapaz, tentava encostar-se a ela. Nesta parte os adolescentes riem muito. E perguntam-me que piada é que tinha aquilo. A alguns até os ouço dizer uma expressões que não sei bem o que querem dizer. – A minha mãe que o ouvia deliciada como uma menina, aqui não se conteve e perguntou:
- Que expressões são essas? – E o ancião respondeu:
- Ena meu, que cena! Que seca! – A minha mãe e eu não pudemos evitar o riso e logo em seguida a minha mãe se desculpou:
- O senhor desculpe a minha falta de cortesia, mas é por até não concordar com esse tipo de palavreado que não consegui conter o riso, estava à espera de outra observação, do género “Nunca mais é sábado” ou coisa parecida. E desculpe a minha filha também.
- Não faz mal minha senhora, não tem importância, eu já estou habituado a que se riam de mim. Mas, já agora, se a senhora não se importar, eu conto-lhe o que respondo aos jovens quando me pergutam porque dançávamos assim. Digo-lhes que aquele contacto com as raparigas era maravilhoso. Que sentíamos o cheiro do champô no seu cabelo, o perfume suave no seu pescoço, o estremecer da sua mão que pousava na nossa e quando virávamos as cabeças, os narizes quase se tocavam e, por vezes, neste rodar de cabeças os lábios se roçavam, deixando-nos o gosto de um inebriante hálito. Finalmente conto-lhes que era assim que nasciam os amores e as paixões. E pronto, minha senhora, são este tipo de coisas que eu conto. Quando já me conhecem, há mães que me alugam para contar histórias nas festas de aniversário dos meninos ou dos jovens.
- Afinal o senhor acabou por me vender vários sonhos. Tenho que lhe pagar. Diga-me quanto lhe devo. Tem que aceitar um pagamento por tudo que nos contou aqui.
- Concerteza que aceito minha senhora. Preciso de ganhar dinheiro para pagar o quarto em que durmo na pensão, senão tenho que dormir na rua.
- E também ainda não me disse o seu nome. Como se chama o senhor?
- Então não se está mesmo a ver? Eu sou o Contador de Histórias.
Manuel Palhares
Odivelas, 5 de Outubro de 2005.
* Imagem de Jaime Luís Gabão que acompanha a publicação deste texto em "FOREVER PEMBA".
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