As meninas que perdi
Quando eu tinha doze, treze anos, uma altura houve, em que sofri muito.
Quase todas as minhas amigas, que eu conhecia desde os meus seis anos, deixaram de querer brincar comigo, como o tinham feito até ali. E eu, triste, fartei-me de sofrer, sem perceber o porquê. Que mal lhes tinha eu feito? No espaço de mais ou menos um ano, tinham deixado quase todas de querer brincar comigo. Agora diziam-me que já não eram meninas. Que agora já eram raparigas e que não podiam mais brincar comigo, do mesmo modo como o tinham feito até ali! Será que havia alguma doença que dava só nas meninas com aquela idade e que eu não conhecia? Ná, não podia ser! Nunca tinha ouvido falar. Mas o que é que se passava?
Elas que nos últimos seis anos tinham brincado comigo a tudo: aos cowboys, aos índios, às escondidas, ao berlinde, ao tic-tac e ao naigode. Tínhamos patinado, jogado hóquei, futebol, nadado e mergulhado juntos. Algumas houve que, às vezes, até me ganhavam nos jogos ou nas corridas de bicicleta – o que me deixava furioso. Agora, de um momento para o outro, diziam que já não eram meninas! Que agora passaram a ser raparigas! Eu cá não lhes achava diferença nenhuma desde os seis anos até agora. Talvez, à medida que cresciam, iam ficando mais teimosas e vaidosas, mas isso era só às vezes. Em vez das tranças ou do rabo de cavalo, algumas, passaram a gostar de usar uma bandelete, que passavam a vida a tirar e a colocar de novo na cabeça, à medida que iam mexendo nos cabelos e revirando os olhos. Até àquela altura, a única mudança que eu tinha reparado nelas, é que tinham deixado de falar tanto, de gritar, de dar pontapés, de me baterem, arranharem e até morderem, como o fizeram até aos nossos dez, onze anos. Claro que também passaram a falar muito mais entre elas, a dizerem segredos umas às outras e rirem sem motivo, mas aquilo eram coisas parvas de meninas. De resto não lhes notava mais nada de diferente, excepto que de vez enquando me olhavam de uma maneira esquisita e piscando muito os olhos, que até parecia que lhes tinha entrado alguma coisa para a vista. A partir dessa altura, passaram a reunirem-se só umas com as outras e até me olhavam com um certo desdém e mal me cumprimentavam. Agora só olhavam e falavam com rapazes muito mais velhos que eu, assim com quinze e dezasseis anos.
Para matar as minhas mágoas, nessa época, fartei-me de praticar desporto, correr e nadar, de manhã até à noite, e durante uns tempos, não quis mais ouvir falar naquelas ingratas, que me tinham abandonado e trocado por rapazes mais velhos.
Comecei a sentir que havia coisas em mim, no meu corpo, que tinham mudado. A minha voz tornara-se esquisita: por vezes grossa, outras fina. O meu pai teve que me ensinar a rapar os pêlos que me tinham passado a aparecer na cara. Os meus movimentos tornaram-se descontrolados e até a minha mãe me dizia para ir para o quintal, porque lhe estava sempre a partir coisas ou a desarrumar tudo em casa. Quando via passar as raparigas, comecei a sentir na minha cara e no meu corpo um calor estranho. Naquela altura de abandono, parecia que só o meu pai me compreendia e andava todo satisfeito com as minhas mudanças. Estava sempre a convidar-me para sair com ele e dizia-me que me queria explicar certas coisas da vida, que eu já estava a ficar um homem e que estava na altura de termos uma conversa de homem para homem. Eu ouvia aquilo tudo, sem perceber lá muito bem o que é que ele queria dizer. E o tempo foi passando.
Só os meus cães me percebiam bem. Esses sim, foram os únicos que se tinham dado comigo sempre do mesmo modo: sempre meus amigos e sem mudanças de comportamento. Em certas alturas, quando me viam sentado no chão, muito quieto e pensativo, a olhar para o céu, iam bucar uma bola de ténis que colocavam junto aos meus pés, desafiando-me para a brincadeira, rosnando e ladrando. E como eu continuava sem me mexer, lambiam-me e gemiam por me verem assim. Nunca lhes agradeci, devidamente, tanta dedicação e tanto amor.
- Manuel Alberto, telefonou a Belinha para te convidar para ires lá a casa no próximo sádado, por volta das quatro horas. É a festa dos seus dezasseis anos.
- Tem a certeza de que ouviu bem, mãe? Essa peste já há mais de três anos que quase
não me fala! Não me liga nada!
- Claro que tenho a certeza. Até falei com a mãe dela, que me disse que tinha muito gosto em que fosses. Viu-te no outro dia no cinema e disse-me que estavas muito bonito!
- Ó mãe, por favor, deixe-se dessas coisas. Todas as suas amigas me acham engraçado, ou jeitoso, ou bonito. Ainda se fossem as filhas! – disse eu baixando a voz.
- O quê? O que foi que disseste? – perguntou a minha mãe.
- Disse que a mãe é que tem que lhe comprar a prenda. Assim, se ela desdenhar, eu digo-lhe logo que foi a mãe que comprou. – respondi eu, fugindo à resposta sobre a observação insolente que tinha feito.
- Olá Manel, entra. – disse-me a Belinha, toda sorridente, enquanto me dava um beijo na cara. Eu fiquei paralizado. Onde é que estava a menina que eu conheci desdentada e que depois, durante seis anos, tinha sido a minha companheira de brincadeiras, jogos e aventuras? Aquela menina morena, meia Maria Rapaz, que quando eu, sem querer, a magoava, gritava e cheia de fúria me batia, arranhava e mordia? Perante mim estava uma rapariga linda de morrer. Com um bonito cabelo preto comprido, que lhe caía sobre os ombros, com uns olhos verdes e doces, um sorriso de encantar, mostrando uns dentes brancos de fazer inveja às estrelas de cinema, um vestido azul celeste muito bonito, que lhe descia um pouco abaixo dos joelhos e que lhe fazia realçar, discretamente, o colo. As suas pernas eram lindas e muito bem torneadas. Calçava uns sapatos brancos e rasos e as meias também eram azul celeste como o vestido. - Entra Manel. – tornou ela a dizer, dando uma cristalina gargalhada que me soou a música celestial, perante o meu ar apatetado que parecia tanto a divertir.
Manuel Palhares
Odivelas, 15 de Dezembro de 2005.
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