Os meus bichos
Eu, há muitos anos atrás, num tempo que quase não lembro, fui muito feliz com os meus cães e também com outros bichos. O cão chamava-se Bala. Ela, a cadela, primeiro foi Boby, até se descobrir que não podia ser, e em vez de Boby, ficou Bobicha. Ele era rafeiro, desajeitado, mas muito meigo. Era filho dela, da cadela, que era muito coquete. Uma fox–terrier muito bela, toda cheia de jeito. A Bobicha, nasceu em Junho de 1957, e foi-me dada em Pebane, uma terra lá para o norte, para cima de Quelimane. Estivemos lá em Julho, pelos anos do meu irmão. Voltámos em Agosto para a Beira e a Bobicha veio de avião!
Éramos muito felizes nós os três... Bricávamos, comíamos e dormíamos juntos, coisa que não era muito do agrado de minha mãe: “São criaturas de Deus, mas há gente e há cães!”.
Para completar a “família” faltava-me um piriquito. E não é que o pedinchei ao meu amigo Zé Roca! Depois de negociações e acordos comerciais, lá o levei, todo contente, para casa... Coitada da minha mãe: “ Penas dão azar...!!!”- dizia ela. Mal sabia como mais tarde o tempo lhe viria a dar razão...
Batizei o piriquito com um nome, que ainda hoje não sei, como é que o inventei: chamava-se Dinky Boy! Como ele era bonito! Vocês estão-se a lembrar daqueles piriquitos azuis e brancos? E como era macho, a zona das narinas era também azul!
Ah! Também consegui um cágado que veio dos lados de Tete. O meu pai, que era todo bonzão, lá me fez mais esse frete...O cágado não tinha um nome que o destacasse dos outros da sua espécie, era só Cágado.
E assim cresceu-me a família: pai, mãe e irmão...dois cães, um piriquito e um cágado!
Tudo isto aconteceu na marginal da Beira, entre o Oceana e o Grande Hotel, perto do Jardim do Bacalhau.
Todos os dias ia à praia, mesmo que estivesse a chover – era quando mais gostava! Era só atravessar a rua. Por vezes deixava os cães em casa, principalmente aos fins-de-semana, quando a praia estava mais povoada, para não incomodarem ninguém. Mas eles sempre conseguiam engraxar a minha mãe...E quando eu vinha da água, desde logo reparava – lá estavam eles deitados em cima da minha toalha!
O Dinky Boy, o piriquito, tinha muitas regalias. Tinha a gaiola aberta e nunca fugia! Tinha autorização do meu pai para debicar as migalhas. Também pudera! Ele seduzia o meu pai, quando este chegava a casa, com loucas manifestações de alegria: voava em círculos por cima da sua cabeça, piava as suas melhores melodias, pousava-lhe no ombro e dava-lhe beijinhos. O meu pai era muito bom, mas havia regras e limites. O meu irmão e eu nem sempre conseguíamos o que queríamos e imitávamos o piriquito! Nunca consegui perceber porquê, talvez porque não piávamos nem voávamos como ele ?!
O cágado Cágado, esse só se entendia com a minha mãe. Quando tinha fome e sede lá aparecia e dava-lhe turras nos pés. Bebia água, comia umas alfaces e cenouras e não sei mais o quê. Irritava o Bala que lhe ladrava. A Bobicha, essa, não lhe ligava. E depois desaparecia, escondia-se, ninguém sabia onde nem porquê...
E os anos foram passando, alegres, doces e felizes, até ao dia 1 de Janeiro de 1961. Um casal muito nosso amigo, a São e o Maurício, que não tinham filhos e tinham a gata Margarida, convidou-nos para o almoço do primeiro dia do ano, por cima da Riviera, ali mesmo ao pé do Capri. “Não leves o piriquito! – disse o meu pai ”. “Não há perigo, ele não sai do meu ombro! – respondi eu”. E já estão a ver o que aconteceu. A gata Margarida deixou que nos destraíssemos e...pum! A minha cara rasgada, a sangrar, e o piriquito no chão. Peguei nele, observei-o e o diagnóstico foi: uma pata partida! Lá se estragou o almoço e lá fomos a correr para casa do Zé Roca. É que ele, entre outras coisas, era uma espécie de curandeiro, nestas coisas de animais e lá improvisou uma tala e lá fomos para casa. Dormi agitado nessa noite e logo pela manhã corri para a sua gaiola, onde o tinha deitado...estava morto, não tinhamos visto a unhada que tinha no peito. O meu pai, quase não comeu durante dois dias e todos nós tristes e calados.
Passaram-se seis meses e por volta de fins de Junho, quando estudava para os exames do 5.º ano do liceu, precisei de tirar umas dúvidas e fui a casa dos meus amigos Palha de Sousa, o Elias e o Vito. Peguei na bicicleta e o Bala, que delirava acompanhar-me, correndo ao meu lado, quis também ir. Mas naquele dia eu não estava para ali virado. “ Xu! Para casa! – gritei-lhe eu”. E ele, pondo aqueles olhos tristes e pedinchões que só os cães sabem fazer, contrariado, obedeceu-me. Eu não me demorei muito. Quando regressei a casa a minha mãe chorava tão alto, que a primeira coisa que pensei foi no meu irmão e no meu pai. Mas não era nada com eles. O Bala tinha sido atropelado, ali na marginal, ao pé do Oceana, em frente à casa que tinha uma ponte, e estava morto e já enterrado quando cheguei...
A Bobicha, a cadela, essa viveu muito tempo. Foi roubada, foi a Inglaterra e quando regressou chamava-se Stella! Mas isso é outra história...Morreu já muito velhinha em Vila de Manica, no dia de Todos os Santos, no dia 1 de Novembro de 1971.
E o cágado que se chamava Cágado, o que é que lhe aconteceu?
Esse também viveu muito, se calhar ainda é vivo... Fazia companhia ao meu pai, quando na madrugada de 15 de Fevereiro de 1976, lá longe, na cidade da Beira, em Moçambique, ele, o meu pai, se deitou e não acordou...
Manuel Palhares
Odivelas, 24 de Julho de 2005.
Éramos muito felizes nós os três... Bricávamos, comíamos e dormíamos juntos, coisa que não era muito do agrado de minha mãe: “São criaturas de Deus, mas há gente e há cães!”.
Para completar a “família” faltava-me um piriquito. E não é que o pedinchei ao meu amigo Zé Roca! Depois de negociações e acordos comerciais, lá o levei, todo contente, para casa... Coitada da minha mãe: “ Penas dão azar...!!!”- dizia ela. Mal sabia como mais tarde o tempo lhe viria a dar razão...
Batizei o piriquito com um nome, que ainda hoje não sei, como é que o inventei: chamava-se Dinky Boy! Como ele era bonito! Vocês estão-se a lembrar daqueles piriquitos azuis e brancos? E como era macho, a zona das narinas era também azul!
Ah! Também consegui um cágado que veio dos lados de Tete. O meu pai, que era todo bonzão, lá me fez mais esse frete...O cágado não tinha um nome que o destacasse dos outros da sua espécie, era só Cágado.
E assim cresceu-me a família: pai, mãe e irmão...dois cães, um piriquito e um cágado!
Tudo isto aconteceu na marginal da Beira, entre o Oceana e o Grande Hotel, perto do Jardim do Bacalhau.
Todos os dias ia à praia, mesmo que estivesse a chover – era quando mais gostava! Era só atravessar a rua. Por vezes deixava os cães em casa, principalmente aos fins-de-semana, quando a praia estava mais povoada, para não incomodarem ninguém. Mas eles sempre conseguiam engraxar a minha mãe...E quando eu vinha da água, desde logo reparava – lá estavam eles deitados em cima da minha toalha!
O Dinky Boy, o piriquito, tinha muitas regalias. Tinha a gaiola aberta e nunca fugia! Tinha autorização do meu pai para debicar as migalhas. Também pudera! Ele seduzia o meu pai, quando este chegava a casa, com loucas manifestações de alegria: voava em círculos por cima da sua cabeça, piava as suas melhores melodias, pousava-lhe no ombro e dava-lhe beijinhos. O meu pai era muito bom, mas havia regras e limites. O meu irmão e eu nem sempre conseguíamos o que queríamos e imitávamos o piriquito! Nunca consegui perceber porquê, talvez porque não piávamos nem voávamos como ele ?!
O cágado Cágado, esse só se entendia com a minha mãe. Quando tinha fome e sede lá aparecia e dava-lhe turras nos pés. Bebia água, comia umas alfaces e cenouras e não sei mais o quê. Irritava o Bala que lhe ladrava. A Bobicha, essa, não lhe ligava. E depois desaparecia, escondia-se, ninguém sabia onde nem porquê...
E os anos foram passando, alegres, doces e felizes, até ao dia 1 de Janeiro de 1961. Um casal muito nosso amigo, a São e o Maurício, que não tinham filhos e tinham a gata Margarida, convidou-nos para o almoço do primeiro dia do ano, por cima da Riviera, ali mesmo ao pé do Capri. “Não leves o piriquito! – disse o meu pai ”. “Não há perigo, ele não sai do meu ombro! – respondi eu”. E já estão a ver o que aconteceu. A gata Margarida deixou que nos destraíssemos e...pum! A minha cara rasgada, a sangrar, e o piriquito no chão. Peguei nele, observei-o e o diagnóstico foi: uma pata partida! Lá se estragou o almoço e lá fomos a correr para casa do Zé Roca. É que ele, entre outras coisas, era uma espécie de curandeiro, nestas coisas de animais e lá improvisou uma tala e lá fomos para casa. Dormi agitado nessa noite e logo pela manhã corri para a sua gaiola, onde o tinha deitado...estava morto, não tinhamos visto a unhada que tinha no peito. O meu pai, quase não comeu durante dois dias e todos nós tristes e calados.
Passaram-se seis meses e por volta de fins de Junho, quando estudava para os exames do 5.º ano do liceu, precisei de tirar umas dúvidas e fui a casa dos meus amigos Palha de Sousa, o Elias e o Vito. Peguei na bicicleta e o Bala, que delirava acompanhar-me, correndo ao meu lado, quis também ir. Mas naquele dia eu não estava para ali virado. “ Xu! Para casa! – gritei-lhe eu”. E ele, pondo aqueles olhos tristes e pedinchões que só os cães sabem fazer, contrariado, obedeceu-me. Eu não me demorei muito. Quando regressei a casa a minha mãe chorava tão alto, que a primeira coisa que pensei foi no meu irmão e no meu pai. Mas não era nada com eles. O Bala tinha sido atropelado, ali na marginal, ao pé do Oceana, em frente à casa que tinha uma ponte, e estava morto e já enterrado quando cheguei...
A Bobicha, a cadela, essa viveu muito tempo. Foi roubada, foi a Inglaterra e quando regressou chamava-se Stella! Mas isso é outra história...Morreu já muito velhinha em Vila de Manica, no dia de Todos os Santos, no dia 1 de Novembro de 1971.
E o cágado que se chamava Cágado, o que é que lhe aconteceu?
Esse também viveu muito, se calhar ainda é vivo... Fazia companhia ao meu pai, quando na madrugada de 15 de Fevereiro de 1976, lá longe, na cidade da Beira, em Moçambique, ele, o meu pai, se deitou e não acordou...
Manuel Palhares
Odivelas, 24 de Julho de 2005.
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